Em determinado ponto de "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo", o filme ganha contornos tão absurdamente ridículos que o espectador se pergunta “por que estou gostando tanto disso?". O filme dirigido pela dupla The Daniels (Daniel Kwan e Daniel Scheinert) se assume ridículo e trata esse aspecto com seriedade, conferindo à obra um tom ainda mais surreal. O mais impressionante é que, apesar de tudo isso, "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" é um filme totalmente pop e acessível, mas que abraça a assinatura de seus diretores e, talvez por isso, tenha surpreendido tanto crítica e público, conquistando onze indicações ao Oscar 2023 (Roteiro Original, Trilha Sonora Original, Canção Original, Filme, Direção, Atriz, Atriz Coadjuvante (duas indicações), Ator Coadjuvante, Figurino e Montagem).
O filme tem início introduzindo os Wang, uma família sino-americana vivendo o sonho americano. Conhecemos Evelyn (Michelle Yeoh, indicada ao Oscar), infeliz no casamento com Waymond (Ke Juy Quan, indicado ao Oscar), com atritos com a filha, Joy (Stephanie Hsu, também indicada ao Oscar), e às voltas com o intimidador pai, Gong Gong (o veterano James Hong, de 93 anos). A lavanderia da família está sob investigação da Receita Federal e, durante uma reunião, um "outro" Waymond assume o controle do marido de Evelyn e dá a ela sua missão: salvar o multiverso da aniquilação. Para isso, Evelyn terá que aprender a acionar suas diferentes versões espalhadas pelo multiverso para adquirir seus talentos e derrotar os vilões que ameaçam acabar com tudo.
Com os multiversos em alta e até mesmo tendo se tornado algo de compreensão mais fácil, "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" se aproveita disso criando algumas (divertidas) regras e distorcendo outras - as diferentes realidades são criadas por escolhas simples como “e se eu aprendesse caratê quando criança?” até outras completamente absurdas como a evolução humana ter acontecido com salsichas no lugar dos dedos das mãos. Não faz sentido nenhum e por isso é tão divertido.
Nada é convencional no filme dos Daniels, do formato dos prêmios dos funcionários da Receita (que funciona como uma Arma de Chekov na narrativa) às referências que vão de um arco inspirado em “Ratatouille” (2007) à fotografia que remete às obras de Wong Kar-Wai ("Amores Expressos", "Amor à Flor da Pele") em um dos arcos de Evelyn em outro universo.
Quando o cenário é apresentado, "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" parte para a ação e o faz com maestria. É curioso que o filme passe a maioria de seu tempo em um ambiente fechado, o prédio da Receita, tenha aspecto tão grandioso. Isso se dá pela magistral edição que cria lutas atravessando realidades distintas e possibilidades infinitas.
Com Michelle Yeoh e Ke Juy Quan excelentes no comando da ação, o filme tem coreografias fantásticas e criativas, sempre utilizando o cenário de forma ativa e até como parte da narrativa. A câmera está sempre em movimento de forme frenética, reproduzindo, durante boa parte do filme, a falta de foco e o estado mental de Evelyn - a dificuldade dela para se manter em outros universos, por exemplo, é uma abertura do filme a transtornos de estresse pós-traumático e de déficit de atenção.
Um dos méritos de "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" é o de nunca se repetir. Por mais que personagens e até algumas situações pareçam similares, o texto se aproveita do multiverso para criar novas dinâmicas. Assim, a Evelyn de uma sequência não será a mesma Evelyn de outra, pois assumirá as características de outra versão dela. O roteiro cria situações inusitadas como gatilhos que tornam possíveis o acessos às diferentes versões de cada personagem, resultando em sequências de humor involuntário sempre levado absolutamente a sério pelos personagens.
"Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" homenageia o cinema e cineastas asiáticos, como o já citado Wong Kar-Wai, e também tem elementos da cinegrafia de Jackie Chan e Stephen Chow (“Kung-Fusão”), com computação gráfica apenas quando absolutamente necessário e com muitos efeitos práticos. A equipe de efeitos visuais, formada por autodidatas, incluindo os dois diretores, foi apenas de nove pessoas, o que torna o filme ainda mais surpreendente.
Produzido pelos irmãos Joe e Antony Russo (“Vingadores: Ultimato”), "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" tem alguns excessos de exposição nos diálogos, como acontece, quem diria, nos filmes da Marvel. Apesar disso, o filme nunca cansa. A mistura do que há de mais pop na indústria com a liberdade autoral do cinema independente garante um filme único e que desperta sentimentos inusitados - ninguém imagina se emocionar em um filme com mais de uma luta envolvendo dildos ou um arco melodramático de personagens com dedos de salsicha, mas isso acontece mais de uma vez.
É interessante como o roteiro parte dessas situações ridículas/caóticas/absurdas para desenvolver a intimidade de seus personagens, as relações familiares de Evelyn com o marido e a filha, por exemplo, e despertar a identificação do espectador. Encontramos os Wang apáticos no início do filme e os deixamos em outro ponto totalmente distinto quando os créditos sobem após acompanharmos e entendermos as transformações. Daniel Kwan e Daniel Scheinert transformam um caos grandioso, de infinitos universos, em uma história intimista de possibilidades e relações humanas.
"Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" é um dos grandes filmes não só de 2022, mas dos últimos anos. É uma obra de conceito complexo, mas de simples compreensão, um filme grandioso, mas intimista, surrealista, mas lidando com problemas reais. Com esse escopo tão amplo, o filme dos Daniels explora as possibilidades levantadas por seu roteiro de forma divertida e emocionante, entregando, assim, um conceito de multiverso com o qual é muito mais fácil de se relacionar do que aquele apresentado por outros universos cinematográficos.
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