Sexta-feira é dia de faxina na casa de Fernanda Takai, em Belo Horizonte, onde ela e sua família se isolaram desde março, com a chegada da pandemia de Covid-19 ao Brasil. Desde então, ela divide as atividades da casa com o marido, John Ulhoa, e a filha, Nina, mas a última sexta, dia 10 de julho, foi diferente. "Eu já avisei que hoje não vou fazer faxina porque quero acompanhar a repercussão do disco, conversar com pessoas e ver as reações delas. É gostoso ver que o disco que fizemos durante esses três meses está chegando às pessoas", conta, em entrevista por telefone.
"Será Que Você Vai Acreditar", novo disco solo de Fernanda, acaba de chegar às plataformas de streaming e, mesmo não tendo sido feito pensando nisso, dialoga diretamente com o momento que o mundo vive. O disco abre com "Terra Plana", de autoria de John, que também tocou todos os instrumentos do álbum. "Se alguém te contar que a Terra é plana e não dá pro espaço viajar. Será que você vai acreditar? Não pode ser, onde é que eu errei? Como é que isso foi acontecer?", canta Fernanda, com sua singela voz sobre arranjos riquíssimos de John .A música, lançada em forma de lyric vídeo desde maio, se tornou alvo da ira de.... terraplanistas. "Tem quase três mil comentários enlouquecidos", lembra a cantora.
A música, apesar do título, não é panfletária ou algo do tipo, apenas um convite à reflexão, algo que se estende por todo o disco, que traz canções de amor e empatia. "Será Que Você Vai Acreditar?" mistura canções de Fernanda a outras escritas por John e também tem alguns covers escolhidos a dedo: de "One Day in Your Life", famosa na voz de Michael Jackson, a "Love is a Losing Game", de Amy Winehouse. A lista ainda tem a belíssima "Não Esqueça", de Nico Nicolaiewsky.
Em duas músicas escritas, ela recebe convidadas que a ajudaram a compor. Em "O Amor em Tempos de Cólera" divide as vozes com Virginie Boutaud, ex-Metrô. Já em "Love Song", quem aparece é Maki Nomiya, da banda japonesa Pizzicato Five, uma das grandes referências musicais do Pato Fu. "Uma ídola de tão longe, lá do outro lado do mundo, hoje faz música comigo", brinca.
O disco, como um todo, é agradável, aconchegante e traz uma sonoridade que se aproxima do Pato Fu, se distanciando um pouco da pegada de bossa nova que Fernanda Takai vinha seguindo nos últimos trabalhos. Na entrevista abaixo, a cantora mineira fala sobre música, arte, pandemia, terraplanistas e posicionamentos políticos. Confira.
Primeiro queria saber como está sendo esse período de isolamento pra vocês em casa? O disco já estava nos planos ou foi algo que surgiu durante a quarentena?
Ele tava nos planos. A gente começou a gravar o disco depois do carnaval e íamos meio que coordenar as gravações dele com os shows que estávamos fazendo tanto do Pato Fu quanto os "Do Tom da Takai". Acho que 14 de março foi o último show que a gente fez, e desde então ficamos em casa, eu, John e Nina, nós três fazendo tudo aqui... Limpeza, comida, jardinagem... É até uma forma de você se ocupar, é quase terapêutico. Se você ficar de pijama o dia inteiro, sem cuidar da casa, a vida vai desandar, então cada um tem que fazer um pouquinho aqui. Eu teria um show no dia 15, mas já não teve, no interior de São Paulo. Aí a gente foi acelerando o processo de gravar, gravando todos os dias. O John acabou gravando todos os instrumentos. Nos discos anteriores até convidei bastante gente pra gravar comigo, mas dessa vez, já que tava assim, não queríamos arriscar nada, botar ninguém em risco, então foi quase uma finalização pra tocarmos o projeto nós dois. A gente teve só essas duas vozes das cantoras que são compositoras juntos comigo (Virginie Boutaud em "O Amor Em Tempos de Cólera" e Maki Nomiya em "Love Song") e elas mandaram as vozes via internet. Foi interessante voltar um pouco às origens tanto do Pato Fu quanto do meu disco solo, aquele dedicado à Nara (Leão), que foi eu John e o Lulu Camargo. A gente sabia que conseguiria fazer e entregar um disco bem cuidado. Foi bom mesmo o fato de a gente nesses três meses trabalhar, aí para pra fazer almoço, almoçar, lavar as coisas todas e voltar. Ocupou a gente bastante.
Ocupa... Eu fico trabalhando o dia inteiro também, então sei que ocupa.
Né? Você manter de alguma forma a sua função no mundo durante a pandemia faz bem. Eu imagino que faça bem pras pessoas, assim como faz bem pra mim, receber alguma coisa nova das pessoas que eu gosto. Então você mandar um disco agora, nesse momento tão crítico... Aqui em Minas Gerais estamos no momento mais crítico, no ponto que os casos estão aumentando muito e as vagas estão acabando. A gente não pode relaxar, sabe? O que tem acontecido é que as pessoas estão levando numa "ah... é assim mesmo", e não é, né? A gente coloca tanta gente em risco se sair do isolamento... O que eu posso fazer é mandar esse disco pras pessoas. Algum dia, ainda não sei quando, ele vai pra rua em formato show, espero, e o formato físico dele ainda não ficou pronto porque as fábricas de Manaus estão fechadas...
Ia perguntar isso. A arte é maravilhosa, imagina isso num vinil?
A gente tá com um projeto gráfico incrível, mas tem que esperar. Acho que não queria guardá-lo e de repente lançar no Natal, sabe? Acho que ele é necessário agora. Ele tá tão sincronizado, até por uma coincidência, porque as músicas estavam quase todas selecionadas e prontas. A feitura delas, os arranjos foram durante a quarentena, mas as músicas estavam compostas, escolhidas, e elas foram entrando em sintonia com as nossas sensações, né? De todo mundo...
O momento, apesar de ser algo atípico que nunca vivemos e espero que não vivamos nunca mais, já vem se construindo, né? É uma situação que só potencializou o que vivemos nos últimos anos...
Exatamente! "Terra Plana" foi feita ano passado, mas espelha um Brasil desde o golpe da Dilma, um Brasil que dá ré nas suas conquistas, o que é isso? A gente tem ministros hoje que são praticamente inimigos de suas próprias pastas. A gente ficou muito impactado por essa realidade que é muito pior do que a gente jamais pensou e ainda vem a pandemia no meio, tudo ficou mais forte.
Voltando ao disco, ele me passou a impressão de um ensinamento, de conselhos, transmissão de conhecimento. Acho que talvez embalado pelas músicas de abertura, o disco traz uma coisa meio familiar. É algo que vocês buscaram?
É um momento de vida mesmo. Eu vou fazer 49 anos, o John tem 54, a gente tem uma filha de 16, uma banda há 28 anos... E nesse Brasil que gente vive hoje, que não é de forma alguma possível da gente se programar para qualquer coisa, pois tudo muda de uma hora para outra, a gente fica pensando na finitude. O que a gente está deixando? Será que foi suficiente o que a gente fez até agora, pra nossa filha ser uma pessoa legal, com saúde e discernimento de mundo? Se por acaso a gente sumir agora, como vai ser? E a gente vê esse tanto de gente desprotegida na nossa sociedade que se não sair de casa não tem comida. Grande parte de nós, confinados, perdeu o emprego, outros têm negócios falindo e a gente se coloca na posição de uma grande parcela da população que já vive assim o tempo inteiro, as pessoas já vivem no limite de pagar conta, de comer, e de repente tá todo mundo nesse mundo de saber se vai ter trabalho, de não saber o que fazer... É um momento de tensão e de pensar sobre o assunto, mas também dar vazão a isso, descomprimir, e a arte ajuda muito. Me ajuda fazer arte e me ajuda consumir a arte das pessoas.
Muito artista achou que fosse parar por um mês, mas já estamos no quarto e agora as coisas estão apertando. É importante o público dar valor à arte neste momento, reconhecer a importância dela nas vidas e valorizar quem produz, né?
A gente, no nosso ciclo, tem toda nossa equipe técnica. É muita gente, uma cadeia muito grande, a parte visível é que é pequena. Dessa parte, ainda, pouca parte consegue sobreviver num momento desse. O glamour não proporcional ao rendimento.
Fernanda Takai
Cantora e compositora
"'Terra Plana' foi feita ano passado, mas espelha um Brasil desde o golpe da Dilma, um Brasil que dá ré nas suas conquistas, o que é isso? A gente tem ministros hoje que são praticamente inimigos de suas próprias pastas. A gente ficou muito impactado por essa realidade que é muito pior do que a gente jamais pensou e ainda vem a pandemia no meio, tudo ficou mais forte."
Você falou que o disco te lembrou da sua estreia solo. Foi no processo de composição e feitura ou na sonoridade também?
O "Tom da Takai" teve um tipo de arranjo mais brasileiro, mais convencional, com Roberto Menescal, Marcos Valle... É a impressão, o DNA brasileiro mesmo. Quando eu faço um disco assim com o John, como faço os outros, até o "Na Medida do Impossível" mesmo, ele já tem uma leitura mais pop rock mesmo, que é minha escola. Quando a gente vai pra um disco em que o John toca todos os instrumentos, usa muita programação eletrônica, eu acho que propicia esse campo mais forte de novo. A gente tem um fio que conduz... "Love is a Losing Game" tem um violão de nailon meio bossa nova, né? Nos outros discos tinham outras versões de canções que não tinham sido regravadas há muito tempo. Essa estrutura do disco é uma estrutura que eu geralmente faço. Canções inéditas misturadas com coisas que eu gosto de ouvir e fico com vontade de cantar. Acho que a temática, esse alinhamento mesmo, acabou sendo de um jeito intuitivo. É natural qua gente acabe recorrendo a esse sentimento que é um pouco melancólico, de estarmos trancados em casa, mas ao mesmo tempo a gente tem que achar um jeito de passar por cima disso e construir um disco novo, com novos arranjos, mostrar... Hoje é dia de faxina aqui em casa, mas eu não vou fazer faxina (risos) porque hoje eu tô só na repercussão, falando sobre o disco, ouvindo o que as pessoas estão comentando nas redes, e é gostoso ver que está chegando às pessoas o que a gente fez durante esses três meses.
Você citou "Loving is a Losing Game" e é uma surpresa você gravar a Amy Winehouse porque são vozes muito diferentes, né?
Totalmente (risos)!
Mas vocês se encontram no caminho, num lugar agradável, mesmo com cantadas diferentes...
Ah, que bom (risos)! A Amy é incrível. Eu gostava muito dela, gosto ainda das canções. Eu vi o show e a vi já fraquinha, no limite de quebrar, e essa é a minha canção preferida dela, embora nunca a tenha cantado nos shows. Já cheguei a cantar "Rehab" nos shows do "Luz Negra", cantava de bis às vezes, fazia uma festinha, com todo mundo cantando, mas quando ela morreu eu fiquei tão sem graça de cantar essa música de novo. Aí fiquei muito tempo pensando... E essa "Loving is a Losing Game" é uma música que gosto muito de ouvir dirigindo, eu adoro dirigir ouvindo música, e ela é maravilhosa. Acho que combinou com esse momento, tem essa desesperança, que definitivamente não é a minha história com o amor, né, porque estou casada há um tempão com o John (risos). Mas a gente precisa disso, precisa não ficar acreditando 100% no amor porque pra ele dar certo você tem que trabalhar muito, não é uma questão de sorte, é de muita entrega e muito empenho. Eu gosto de cantar e lembrar "calma que não é sempre assim, não é desse jeito, não vai ficar assim sempre se você não se esforçar pra isso".
Fernanda Takai
Cantora e compositora
"Eu não tinha experimentado com tanta virulência os ataques dos escritórios do ódio. Na época da Dilma teve um pouco, mas foi menos. Eu gravei áudio pra campanha do Haddad e Manu, fiz locução pra alguns vídeos, e fui tocar no festival "Lula Livre", eu sempre me posicionei. Foi incrível que eu postava uma coisa e no outro dia acordava com uma chuva, com metralhadoras de xingamentos e coisas horríveis"
Não sei se foi intencional, mas ela também é a sexta faixa do "Back to Black", da Amy...
Nunca soube disso, você que tá me dizendo isso pela primeira vez (risos).
E eu pensando que tinha sido tudo intencional, pensadinho... (risos)
Isso é uma boa revelação (risos), posso usar como lenda urbana do meu disco. Eu tenho umas listas das preferidas e ela tá sempre nas minhas listas, então eu acabo ouvindo ela muito mais do que o disco inteiro.
"O Amor nos Tempos da Cólera" é uma música linda, composição sua com a Virginie, totalmente ligada a esses tempos. Tem um quê de Gabriel Garcia Márquez ou só a inspiração no nome do livro mesmo?
A gente só se apropriou do título e mudou algumas coisinhas nele (risos). É uma obra-prima, um livro maravilhoso, mas a gente tentou mesmo foi fazer um afago às pessoas nesses tempos violentos, de violência digital, de gente apontando o dedo, querendo matar outra... A Virginie tá morando na França há um tempo já. Quando ela saiu do Metrô, ela se casou e ficou um tempo lá fora, parou de cantar. Aí ficou viúva e reencontrou o prazer de compor e cantar, é uma retomada dela cantando.
As parcerias do disco são legais porque não são óbvias. Muitas vezes a gente vê parcerias pra dar visibilidade...
Aquelas só pra aparecer, né? Essa não, foi de sintonia mesmo. Ela viu que eu comentei que cantava música do Metrô na minha banda do colégio e mandou uma mensagem super simpática no Instagram. A gente começou a conversar e todo dia a gente se fala pelas redes sociais, trocando e-mails, e acabamos fazendo esse trabalho juntas por pura afinidade, por ter história, por eu ter ouvido muito a voz dela quando era jovem, e por ela ter sido uma mulher em banda, o que ainda hoje, 40 anos depois, continua raro.
E teve a Maki também, né? Que imagino seja muito legal porque o Pizzicato Five sempre foi uma grande referência pro Pato Fu.
Nossa, a gente ouviu demais. É uma banda que inspira o Pato Fu. Ela gostou demais quando tocamos no Japão, ela foi, assistiu ao show, cantou comigo. Ela percebeu que era de verdade uma banda brasileira cantando em japonês. Ela ouviu "Made in Japan" e não acreditava. E ela gosta muito de música brasileira, de bossa nova, e eu sempre mando meus lançamentos pra ela. Nas sete vezes que fui ao Japão a gente se encontrou, saiu pra jantar, pra assistir a shows, então virou uma amizade... Uma ídola tão longe, lá do outro lado do mundo, de uma geração um pouco anterior à minha, mas que hoje faz música comigo. É uma celebração mesmo. Num momento tão duro, você ter uma coisa dessas... E a música é a mais pra cima do disco.
Eu acabei de ver o vídeo de vocês cantando aqui no Twitter. Ficou legal, uma coisa caseira, intimista e estamos todos em casa, né?
Ah... que bonitinho. Ela que fez, nem me avisou, foi da cabeça dela. Ela pegou um vídeo que fiz pro dia do nikkei (descendentes de japoneses) e montou ela cantando comigo. Nem deu tempo de sugerir fazer algo mais pra frente. Um amorzinho. É simples e faz tanto efeito, né? Não é preciso tanta pirotecnia. A gente fez o disco, mixou, masterizou, cuidou de capa e tudo. Tem dois lyric video e eu quero criar mais conteúdo visual pro disco pra mantê-lo, porque não vou sair em turnê. Eu ia propor de fazer um clipe com ela à distância, mas ela já fez um trechinho, né? Achei tao bonitinho (risos).
Você falou de ameaças nas redes, mas nunca teve medo de se posicionar, né?
Eu não tinha experimentado com tanta virulência os ataques dos escritórios do ódio. Na época da Dilma teve um pouco, mas foi menos. Eu gravei áudio pra campanha do Haddad e Manu, fiz locução pra alguns vídeos, e fui tocar no festival "Lula Livre", eu sempre me posicionei. Foi incrível que eu postava uma coisa e no outro dia acordava com uma chuva, com metralhadoras de xingamentos e coisas horríveis. Eu penso como essas pessoas conseguem viver assim, só indo nas páginas das outras pessoas, diferentes delas, e ficar atacando. Eu sou uma pessoa muito educada, então pra eu perder a educação e xingar de volta é raríssimo. Eu tenho que ser o oposto deles. O que eu posso fazer é bloquear essas pessoas e mandar mensagem geral de que isso não vai fazer diferença pra mim. Não adianta ficarem me xingando que eu não vou agir dessa forma violenta com eles. A gente tem que ser o oposto do que eles são, porque essa é a grande diferença. A gente tem que manter a calma, manter essa vibe. Eu não vou brigar. Inclusive até a "Terra Plana" (música) mesmo, né? No vídeo do YouTube da música tem quase três mil comentários dos terraplanistas enlouquecidos com a música. Alguns ainda põem a mão na cabeça e não ficam me xingando, outros acham que estou cantando que a Terra é plana mesmo, pra você ter ideia... Tem outros que ficam falando que é tudo computação gráfica da Nasa, cada absurdo. A música tem um título super polêmico, que poderia ser uma música bem panfletária, mas não, quisemos chamar atenção dos terraplanistas pra ver se algum deles vai ouvir a letra e pensar de novo sobre o assunto. É sobre ciência, é sobre andar pra frente, mas não, eles não fazem isso, entendem tudo errado.
"Corações Vazios" também tem uma mensagem legal de empatia, né? Uma coisa de entendimento e compreensão...
Essa música é uma das mais novas, ela e "O Que Ninguém Diz" foram as últimas a ficar prontas pro disco. No "Corações Vazios" a gente já via o que tava acontencendo na China, na Itália, e também via que as pessoas estavam entrando no limite da fome, de não ter água, de vários limites... E como a gente tava comentando, as pessoas como a gente também estão entrando em uns limites. Aí as pessoas perdem a razão e fazem qualquer coisa. A gente tem que cuidar um do outro pra isso não acontecer. A música está bem no sentimento dessa impotência mesmo.
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