Um dos filmes de terror mais legais dos últimos anos, “Corrente do Mal” (“It Follows”), de David Robert Mitchell, lidava com o completo desconhecido, com uma maldição que perseguia os jovens após o sexo, e cuja única forma de se escapar é tendo relações com outra pessoa. O filme explora esse medo do desconhecido, do “invisível”, o máximo que pode, entendendo suas limitações orçamentárias e explorando medos adolescentes para despertar a empatia - e o medo - do público.
“Filhos do Privilégio”, terror alemão da Netflix, inicialmente parece se aproximar da narrativa do filme de David Robert Mitchell, mas os diretores Katharina Schöde e Felix Fuchssteiner abandonam a possibilidade narrativa simples em nome da exposição em excesso e de um dos mais constrangedores finais já vistos na história do cinema recente.
O início do filme é muito promissor. Conhecemos o protagonista, Finn, como um pré-adolescente que um dia é tirado às pressas de casa pela irmã mais velha, Anna, que se diz perseguida por algo misterioso. Eles fogem até uma ponte de onde Anna se joga, causando um trauma no irmão.
Quando chegamos ao presente, Finn (Max Schimmelpfennig) tem 18 anos e é tido como um “esquisitão” na escola enquanto sua irmã gêmea, Sophie (Milena Tscharntke), é a popular. Finn sente algo diferente, talvez pela proximidade da morte do avô, mas não é apenas isso - ele tem visões da morte da irmã e as mistura com algumas imagens perturbadoras que insiste em desenhar, um traço típico de personalidade perturbada nas obras de ficção.
Quando coisas estranhas começam a acontecer também com as pessoas que o cercam, inclusive mortes misteriosas que a cidade inteira insiste em considerar suicídio, Finn decide investigar por conta própria ao lado da amiga Lena (Lea van Acken) se tudo aquilo é uma grande e complexa conspiração ou apenas alucinações criadas por seus traumas.
“Filhos do Privilégio”, durante parte do tempo, é eficaz. A narrativa inicialmente coloca o protagonista no limite da sanidade enquanto passeia pelos últimos dias do colegial. O texto funciona também ao se apresentar com uma linguagem moderna, com famílias que não vilanizam sexo e drogas, e jovens que pouco se importam com a sexualidade alheia.
O filme constrói bem a tensão necessária para o filme do gênero, mas começa a revelar demais antes da hora, tirando a força do momento em que a revelação do “monstro” realmente seria impactante seja qual fosse a opção do roteiro sobre a dualidade real ou ficção.
Até a questão do “privilégio” presente no título do filme encontra espaço em alguns momentos, mesmo que superficialmente. “Filhos do Privilégio” é um filme sobre emancipação dos jovens e a liberdade fazer as próprias escolhas, uma história sobre não ter que pagar pelas escolhas feitas pelos pais, sobre usar o privilégio para fazer algo diferente ao invés de dar sequência a um legado.
A partir de um ponto, porém, “Filhos do Privilégio” se transforma em algo diferente, deixando de se concentrar em qualquer discussão ou mistério que tenha proposto previamente e se tornando um filme bobo de conspiração. O terceiro ato do filme é uma escalada de ruindade, com cada sequência superando, uma após a outra, o nível de ruindade possível em uma obra. Toda boa vontade com o filme até este ponto é transformada em descrença de estar vendo algo tão constrangedor.
Ao final, Katharina Schöde e Felix Fuchssteiner parecem não ter ideia do que querem entregar. “Filhos do Privilégio” tem início como um bom terror, com temas interessantes, se transforma em um filme de conspiração superficial e se encerra com puro constrangimento, com uma conclusão quase amadora destoando completamente do que foi feito na primeira metade do filme, tornando tudo ali impossível de ser levado a sério mesmo com muita boa vontade.
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