“Guerra de Algodão”, que estreia nesta segunda (18) na Netflix, tem duas personagens centrais: Dora (Dora Goritzki) e Maria (Thaia Perez). A primeira, uma adolescente que, após anos morando com a mãe na Alemanha, chega a Salvador para passar uma temporada com a avó que mal conhece, Maria. É em cima da distante relação das duas que os diretores Marília Hughes e Claudio Marques constroem sua narrativa, mas “Guerra de Algodão” também tem outro personagem importante, a cidade.
Uma estranha no país em que nasceu, Dora vê a cidade como uma ameaça barulhenta, algo contra o qual luta - até em um momento que parece ter encontrado certo aconchego, logo percebe que o ambiente ainda lhe é hostil. É por isso que a mixagem de som é tão importante no filme.
“O som é um personagem”, afirma Claudio Marques, em entrevista via chamada de vídeo. “Ele mostra o estado de espírito da Dora, como ela se sente ameaçada ali. Quando ela volta pra casa da avó, mesmo sem saber, ela se sente segura pois o som da cidade não chega até ali”, completa o diretor e roteirista do filme.
A jornada de Dora nos proporciona conhecer Maria, uma pioneira das artes em Salvador e que paga o preço pela vida que escolheu em uma época em que a arte não era bem aceita - “Essa cidade era muito provinciana, as pessoas não tinham nada na cabeça”, diz a personagem em determinado momento. “Guerra de Algodão”, como define a também diretora Marília Hughes, “fala do apagamento que a sociedade impôs e continua a impor às mulheres de personalidade forte”.
“Guerra de Algodão”, com suas qualidades e seus defeitos, é uma obra acima de tudo ousada para um cinema pop. O filme opta por uma narrativa de poucos diálogos e, consequentemente, pouca exposição; cabe ao espectador entender e identificar seus vários conflitos. “Os conflitos hoje estão muito verbalizados no cinema. Você vê um filme como os da Marvel e os diálogos só são interrompidos para os personagens brigarem”, explica, antes de completar: “a gente tenta um filme mais acessível, mas convida o espectador a pensar com a gente, tentar compreender as expressões dos rostos dos personagens, tentar entender suas emoções”. Essas emoções, no entanto, são universais, o que aproxima o público do filme
Esteticamente, o filme é bem interessante e aproveita bem a capital baiana sem cair em clichês. Marília e Cláudio filmam Salvador sem romantizá-la, mas tampouco sem estereotipá-la - a cidade é, como disse, uma personagem, quase uma antagonista que se transforma em parceira à medida que Dora vai se reconhecendo naquele lugar e, ainda, na louvável jornada de sua avó.
Narrativamente, “Guerra de Algodão” é introspectivo, alternando o silêncio e o barulho, com poucas palavras. É curioso, assim, que quando cria um personagem mais eloquente, a editora do livro sobre Maria interpretada por Analu Tavares, o faz com uma artificialidade - ela claramente não pertence àquele ambiente, não dialoga com Dora, Maria ou a cidade. “É uma personagem intencionalmente over, a vilã do filme, ela destoa no jeito de falar, não é sincera”, analisa Cláudio, quando perguntado sobre uma certa “teatralidade” em alguns momentos do filme. Ele completa: “Acho que é mais folhetinesco do que teatral”, completa. De fato, a editora é uma personagem de fácil assimilação, talvez a única de todo o filme que seja fácil de assimilar e entender as motivações.
Sob a camada de cinema independente, há em “Guerra de Algodão” uma história pop de não pertencimento e autoconhecimento. O filme foge de embates dramáticos fáceis e aposta em conflitos mais pessoais e com os quais a audiência pode se identificar com facilidade - seja na jornada de Dora ou na história pregressa de Maria, que é apresentada gradualmente.
“Guerra de Algodão” é um filme tranquilo, com uma construção sonora espetacular que vai aos poucos se transformando junto com a protagonista. É um filme que rodou bastante por festivais e foi bem recebido, mas que teve sua estreia nos cinemas prejudicada pela pandemia. Agora, na Netflix, pode finalmente encontrar seu merecido público.
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