Em sua estreia na direção, a atriz Halle Berry enfrenta um grande desafio. “Ferida” (“Bruised”), que chega nesta quarta (24) à Netflix, poderia se apresentar até como um bom e simples drama esportivo, uma história de superação como as tantas que o esporte já ofereceu à sétima arte, mas se deixa ser quase arruinado por um roteiro atropelado da também estreante Michelle Rosenfarb.
“Ferida” é a história de Jackie Justice (Halle Berry), uma ex-lutadora de MMA com um início promissor de carreira, mas que deixou o esporte após abandonar uma luta sem dar explicação alguma. Quando a conhecemos, alguns anos depois, Jackie está limpando casas e morando com o marido e ex-empresário Desi (Adan Canto). O filme logo nos deixa claro que o relacionamento dos dois não é muito saudável, mas tenta, ao menos a princípio, conferir uma profundidade a ele - como se ela buscasse ali a violência e o conflito que não tinha mais desde que abandonou as lutas. Essa ideia, assim como tantas outras, é abandonada logo após ser apresentada.
Um dia, Desi leva Jackie a uma luta em que ele pretende recrutar a atração principal. Por motivo algum além da necessidade de o roteiro ser movimentado em uma cena muito mal construída, a protagonista acaba se envolvendo numa luta com uma mulher muito mais forte e mais jovem. Não demora, claro, para ela ser recrutada por um empresário disposto a treiná-la para enfrentar a atual campeã do mundo, a Lady Killer (Valentina Shevchenko, campeã do UFC na vida real).
Como se os desafios da preparação para a luta não fossem o suficiente, o roteiro ainda encaixa um filho há muito esquecido para Jackie, a complexa relação dela com a mãe, um novo relacionamento amoroso, alcoolismo e o já citado casamento que se torna cada vez mais insustentável.
É compreensível que a Halle Berry diretora queira criar conflitos para que a Halle Berry atriz possa se destacar. De fato, “Ferida” se sustenta na atuação de uma atriz disposta a provar para a indústria ainda ter muito o que oferecer. O roteiro, no entanto, não oferece respiro à narrativa - acabamos entendendo alguma passagem de tempo em função da evolução dela como lutadora e pelo sumiço de alguns hematomas carregados desde a primeira luta, mas esse espaço não é sentido na trama.
Com tantas subtramas para criar a persona da Jackie que luta dentro e fora do octógono, o texto de Michelle Rosenfarb perde tempo com saídas fáceis como a tentativa de humanização da protagonista com um filho e ignora outros possíveis conflitos. O roteiro foi inicialmente pensado para um filme protagonizado por uma mulher branca de 21 anos e, por isso, ignora qualquer questão racial e até de machismo em um mundo como o do MMA.
O texto ainda usa alguns recursos para humanizar e impactar, como a briga entre Jackie e sua mãe no terceiro ato, mas não aproveita o forte desfecho da ótima cena, terminando o filme como se nada daquilo tivesse acontecido. Ao invés de trabalhar essas questões, Rosenfarb prefere dar “profundidade” à sua protagonista ao criá-la sempre fumando ou bebendo escondido do marido tóxico.
Halle Berry se esforça como diretora e atriz para dar relevância ao filme. É visível que ela estudou movimentos e se preparou fisicamente para o papel, o que oferece uma veracidade satisfatória aos combates, principalmente pelo olhar de quem não acompanha o mundo das artes marciais mistas.
Como diretora, Berry tem bons e maus momentos nos combates; o embate final, entre Jackie e Lady Killer, é bom, com boas coreografias emulando, dentro do possível, a dinâmica de uma luta. Berry alterna alguns cortes rápidos e muita movimentação de câmera com alguns takes mais longos para que o público sinta o peso dos golpes. É quase curioso que a diretora pareça guardar esse peso para o clímax, o que talvez seja possível por ter uma lutadora profissional em cena.
Halle Berry se sai bem também no comando dos atores e criando alguns pequenos momentos para salvar o roteiro da superficialidade. Ao contrário do que faz nas sequências das lutas, a atriz/diretora consegue imprimir uma intimidade a alguns relacionamentos, principalmente o de Jackie e Budddhakan (Sheila Atim), cheio de palavras não ditas, mas compreendidas.
“Ferida” não é ruim e poderia ser um bom drama esportivo se não tentasse tanto ser um melodramático drama familiar e uma história de redenção. Halle Berry se esforça, como atriz e diretora, para salvar a obra criando um filme esteticamente interessante e com boas atuações. O resultado é um filme confortável, que cria os conflitos para depois ignorá-los, formulaico e derivativo, apresentando uma história construída com histórias já contadas diversas outras vezes em filmes melhores.
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