Não é equívoco algum colocar “Pantera Negra” (2018) na lista dos filmes mais importantes da história do cinema. Dirigido por Ryan Coogler e estrelado por Chadwick Boseman, o único filme da Marvel indicado ao Oscar de Melhor Filme (venceu Trilha Sonora Original, Figurino e Design de Produção) foi um fenômeno cultural e social. Ao focar em personagens negros super poderosos e em uma nação africana megadesenvolvida, a narrativa não tem a cor da pele como conflito, inspirando milhões de jovens negros mundo afora - finalmente havia um protagonista negro nos tão populares filmes de super-heróis. O filme fez US$ 1,3 bilhão em bilheteria mundo afora, um sucesso que obviamente credenciava os envolvidos a mais e mais filmes do personagem.
Com o roteiro pronto para ser filmado, Coogler recebeu a notícia devastadora da morte de Chadwick Boseman em agosto de 2020. O que fazer com o filme, escalar um novo ator para o papel de T’Challa/Pantera Negra ou lidar com a morte do personagem e reescrever tudo? Como todos sabem, a Marvel seguiu o segundo caminho e “Pantera Negra: Wakanda Para Sempre” tem sua força e suas fraquezas justamente nessa escolha.
O filme tem início com a morte e o funeral de T’Challa, uma cerimônia que passeia pelas ruas de Wakanda celebrando a vida e o legado do rei. Somos imediatamente convidados a sentir a dor da rainha Ramonda (Angela Bassett, em ótima atuação) e de Shuri (Letitia Wright). A sequência é bonita, viva, e mostra os temas com que o filme tem que lidar, o luto, a homenagem e o dever de seguir em frente. O texto então promove uma passagem de tempo e, um ano depois, vemos a rainha discursando na ONU, onde os países membros reclamam, mais uma vez, da não-comercialização de vibranium pela nação, uma sequência entrecortada pela primeira cena de ação do filme, com as Dora Milaje brilhando - o rei pode estar morto, mas Wakanda passa longe de estar totalmente desprotegida.
Em seguida acompanhamos uma ação americana no Oceano Atlântico, onde uma nova máquina foi capaz de detectar vibranium. A operação é atacada por seres submarinos comandados por Namor (Tenoch Huerta Mejía), um sujeito muito poderoso e com asas nos pés, um deus para sua nação Telokan. É muito interessante como o filme cria os telokianos, uma raça que há séculos vive em um mundo submerso e rico em vibranium. Telokan é uma nação mesoamericana que preservou costumes pré-colonização espanhola e cultivou um desejo de vingança contra a superfície, os colonizadores, durante todo esse tempo. Apesar do filme ter esse sentimento como força motriz, ele parece mesmo só vir à tona quando se aproximam da nação secreta, quando Namor vê a possibilidade de se juntar com Wakanda na vindoura guerra, pois as duas nações, as únicas fontes conhecidas de vibranium, serão alvos de investidas militares do resto do mundo.
“Pantera Negra: Wakanda Para Sempre” tem plena noção da força da representatividade do filme de 2018. Ao criar os telokianos como latino-americanos, o roteiro de Coogler abraça mais um grupo pouco explorado nesse universo e ainda reforça o discurso anti-colonização. “Eles trouxeram varíola e aquele maldito idioma”, diz Namor, um líder carismático e inteligente que protagoniza boas cenas em diálogos com Shuri. Tenoch Huerta Mejía, que talvez o espectador conheça como o Rafael Quintero de “Narcos: México”, é ótimo no papel, abraçando uma arrogância, mas oferecendo também um pouco de afeto em sua história até aquele ponto.
É na dinâmica de saber se Namor e Telokan serão aliados ou inimigos de Wakanda que o novo “Pantera Negra” se sustenta. Após o bom primeiro ato, no entanto, o filme se torna enfadonho, com muitas idas e vindas a lugares distintos e muita exposição nos diálogos.
O roteiro traz de volta antigos personagens já esperados, como o agente Ross (Martin Freeman), Nakia (Lupita Nyong’o), Okoye (Danai Gurira) e M’Baku (Winston Duke), que funciona como alívio cômico no lugar de Shuri. “Wakanda Para Sempre” também introduz Riri (Dominique Thorne), uma jovem cientista que desenvolve com Shuri uma relação similar à de Peter Parker e Tony Stark (similar até demais); a parceria até rende boas cenas e alguns bons diálogos, mas o foco de Riri é um novo grupo de identificação, o de uma heroína relevante, jovem e brilhante com a qual o público mais jovem pode se identificar sem esforço.
“Pantera Negra: Wakanda Para Sempre” busca, acima de tudo, o conforto de uma obra que em nada desafia seu público. Sim, há as amarras Marvel/Disney e talvez um excesso de zelo pela perda de Chadwick Boseman, mas a fórmula está saturada, é mais uma jornada do herói, em todas suas etapas, repetindo viradas de maneira preguiçosa e até covarde.
O filme encontra soluções imediatas para conflitos, às vezes quase mágicas, raramente dando a eles o peso necessário. É curioso como o roteiro abusa do didatismo tentando explicar sentimentos e viradas ao espectador como se houvesse alguma sutileza na narrativa que não permitisse uma fácil compreensão ou que deixasse algo a cargo da subjetividade.
Enquanto o texto tem problemas, a parte técnica se mantém em destaque. O design de produção de Hannah Beachler continua rico ao mostrar o encantamento afrofuturista de Wakanda, que agora também ganha um pouco as ruas da nação, e o figurino é espetacular, mérito novamente de Ruth E. Carter. É uma pena que vemos pouco de Telokan, um lugar bem imaginado, mas pouco desenvolvido pelo roteiro, que nunca mostra exatamente como funciona aquela sociedade que, ao fim, é a grande novidade do filme.
A presença de uma nação “aquática” também oferece novas possibilidades às cenas de luta. Mesmo com alguns efeitos de computação gráfica na construção de cenários (a falta de profundidade é visível) e em lutas (nada que se aproxime da medonha cena subterrânea do primeiro filme), Ryan Coogler opta por sequências mais coreografadas, fazendo bom uso do treinamento militar das Dora MIlaje e dos guerreiros telokianos, que operam em uma mistura de caça e estratégia militar. É Danai Gurira que protagoniza as melhores cenas de luta, com boas coreografias e muita intensidade - seguindo a fórmula do gênero, o filme cria rivalidades entre diversos personagens para que eles possam fazer lutas de “subchefes” enquanto o grande embate se desenvolve, ou seja, todos têm seus momento para brilhar.
“Pantera Negra: Wakanda Forever” é um filme satisfatório, com boas cenas de ação, mas que depende do drama fora da tela para emocionar. É também um filme que pouco se aproveita da possível ótima trama política que introduz (talvez a guarde para sequências), apesar de haver tempo de sobra para isso nos 161 minutos de projeção. Ao fim, é uma bela homenagem, principalmente com a cena pós-crédito (só tem uma, no meio), mas um filme que carece da ousadia que marcava o trabalho de Ryan Coogler até o momento.
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