Mesmo sendo um nome que talvez não desperte grandes reações de um público amplo, Kenneth Branagh é um dos grandes nomes do cinema nas últimas três décadas. O cineasta e ator norte-irlandês começou sua carreira no teatro britânico interpretando obras de Shakespeare e logo fundou sua própria companhia de teatro para dirigir peças do Bardo. Seu talento logo foi para o cinema e, com apenas 29 anos, dirigiu e estrelou “Henrique 5º” (1989), que lhe rendeu duas indicações ao Oscar de 1990, como ator e diretor.
Desde então, Branagh vem entregando trabalhos variados que vão de “Jack Ryan: Operação Sombra” (2014) ou o “Cinderella” de 2015 à sua paixão por Sheakespeare em filmes como “Frankenstein de Mary Shelley” (1994), “Hamlet” (1996), “Muito Barulho por Nada” (1993) e o belíssimo “A Pura Verdade” (2018). Por sua bagagem dos palcos, Branagh se tornou o tipo do diretor que os estúdios chamam quando querem dar credibilidade a um projeto.
Recentemente, o cineasta levou para as telas também outra paixão: as obras de Agatha Christie. Kenneth Branagh é o diretor tanto de “Assassinato no Expresso do Oriente” (2017) quanto de “Morte no Nilo” (2022). Em ambos, ele também interpreta o detetive Hercule Poirot, personagem por quem já demonstrou uma grande paixão.
Após tantos trabalhos homenageando inspirações como William Shakespeare e Agatha Christie, o cineasta resolveu entregar seu trabalho mais intimista e um dos mais apaixonantes, “Belfast”. Indicado a sete Oscar (Melhor Filme, Direção, Ator Coadjuvante, Atriz Coadjuvante, Roteiro Original, Canção Original e Som), o filme chega aos cinemas brasileiros nesta quinta (10) com um recorte da infância de Kennet Branagh.
“Belfast” se passa em 1969, na cidade que dá título à obra. O filme tem início com uma bela tarde, com crianças brincando e jogando bola momentos antes de um protesto ocupar a rua. Um grupo de jovens protestantes ateou fogo em casas e carros de irlandeses católicos a fim de expulsá-los da região. Em meio a tudo isso, o pequeno Buddy (Jude Hill) se vê perdido - ele e sua família são protestantes, mas diversos amigos da rua e da escola são católicos. Por que, afinal, diferentes religiões não podem conviver em harmonia?
Logo a rua que antes transbordava alegria ganha um clima de guerra, com barricadas controladas por moradores e o exército monitorando entradas e saídas do local. É nesse cenário que acompanhamos a jornada de Buddy e a maneira como ele enxerga o mundo ao seu redor. Seus pais, interpretados por Jamie Dornan e Catriona Balfe (os personagens não têm nomes), vivem problemas financeiros e a solução pode ser deixar Belfast rumo à Inglaterra, um movimento temido por Budddy, que tem amigos e um interesse amoroso na cidade.
“Belfast” é como se Branagh olhasse para seu passado para entender o que acontecia. Os conflitos entre católicos e protestantes são históricos - o maior deles, em 1972, foi cantado pelo U2 em “Sunday Bloody Sunday” e registrado por Paul Greengrass no ótimo “Domingo Sangrento” (2002), filme infelizmente não disponível em nenhuma plataforma de streaming no Brasil.
O olhar do cineasta para a política norte-irlandesa da época é interessante pois Branagh, apesar de protestante, não escolhe lados. Em uma sequência, por exemplo, Buddy ouve que o catolicismo é a “religião do medo”, mas a cena seguinte traz justamente um pastor pregando sua fé através do medo. Apesar da eficiente construção política, “Belfast” chama a atenção mesmo é como um filme familiar, como se hoje, adultos, fôssemos capazes de olhar para memórias passadas e entender as situações pelas quais nossos pais passavam.
“Belfast” separa bem os arcos políticos dos momentos intimistas. Entendemos o cenário pelos acontecimentos com o pai de Buddy, mas nunca nos aprofundamos neles justamente por acompanhar recortes da memória do cineasta. O filme ganha força nos momentos mais intimistas e na relação do protagonista com seus avós, interpretados brilhantemente por Ciaran Hinds e Judi Dench, ambos indicados ao Oscar. Os diálogos do jovem com ambos nos ajudam a construir um cenário mais amplo dos conflitos sociais e familiares, mas conduzindo o texto para a intimidade da família.
A fotografia de Haris Zambaloukos, colaborador habitual de Branagh, é impecável. O diretor de fotografia usa os planos e o foco para ajudar na narrativa. É muito interessante, também, como “Belfast” usa a cor para dar vida e relevância a alguns momentos. Quando Buddy vai ao cinema ou ao teatro, por exemplo, é tudo em cores, ao contrário do resto do filme - a cena em que a peça de teatro, colorida, reflete nos óculos de Judi Dench, em preto e branco, é poderosa e sutil. É pela arte que Buddy, e Branagh, viam esperança em um ambiente perigoso e através da qual construíam uma identidade.
“Belfast” é um filme primoroso. Com uma narrativa leve e divertida, o filme consegue ser político e familiar ao mesmo tempo em que constrói uma história de amor à cidade e ressalta a importância da arte. Com diversas camadas, o filme funciona tanto como um recorte político de época quanto como uma história nostálgica de amor à família, tudo pontuado pela impecável trilha sonora original de Van Morrison, um conterrâneo de Branagh.
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