Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

"Invocação do Mal 3" e a picaretagem do "baseado em fatos reais"

"Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio" chega aos cinemas com mais um capítulo da popular franquia de terror que leva para as telas histórias "verdadeiras"

Vitória
Publicado em 09/06/2021 às 01h55
Filme
Filme "Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio". Crédito: Warner/Divulgação

O selo de obra “Baseada em Fatos Reais”, apesar de redundante, afinal se são fatos, são reais, vende bastante e garante credibilidade. Pouco importa se a obra é realmente baseada em fatos - o que importa é fazer o público acreditar que aquilo aconteceu.

O clássico “Fargo” (1996), dos irmãos Joel e Ethan Coen, é aberto com a afirmação de se tratar de um filme baseado em fatos: “os eventos descritos no filme aconteceram em Minnesota, em 1987. A pedido dos sobreviventes, os nomes foram alterados. Por respeito aos mortos, o resto é contado exatamente como a história aconteceu”. O que esperar de um filme que é apresentado ao público com essas informações?

Por algum tempo, os Coen sustentaram a brincadeira em entrevistas, mas não demorou para Ethan dizer que há duas inspirações reais no filme, duas histórias pequenas que não sustentariam o filme sozinho. Para os Coen, o “baseado em fatos reais” é quase um gênero de cinema. A série “Fargo” é realizada da mesma forma, com a mesma informação de abertura a cada episódio.

A franquia “Invocação do Mal”, uma das maiores marcas do terror no cinema, faz algo parecido com o que fizeram os irmãos Coen na década de 1990. Os filmes e alguns de seus derivados são baseados nas histórias do casal de demonologistas Ed e Lorraine Warren, investigadores de fenômenos paranormais cujos casos se sustentam em suas anotações e em depoimentos de famílias envolvidas - normalmente moradores de casas assombradas ou vítimas de possessões demoníacas. Os Warren já foram desmascarados algumas vezes, mas pouco importa, se tornaram um fenômeno pop.

“Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio”, oitavo filme do universo criado por James Wan, se aproveita de uma história de fato real para repetir sua fórmula de terror ‘jump scare’. O filme tem início com uma exorcismo, quando Ed (Patrick Wilson) e Lorraine (Vera Farmiga) ajudam um adolescente possuído a se livrar de um espírito que tomou conta de seu corpo. Durante o processo, em um ato de desespero, Arne (Ruairi O’Connor), exige que o demônio deixe o corpo de David (Julian Hilliard) e até se oferece para ser a nova “casa” para o espírito maligno. A ideia funciona, mas a que custo?

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Filme "Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio". Crédito: Warner/Divulgação

Pouco depois do ritual de exorcismo, Arne começa a apresentar um comportamento diferente e acaba assassinando seu senhorio após uma discussão que envolvia também Mary, noiva do assassino. Arne então é encontrado coberto de sangue, com a arma do crime, andando desorientado pela rua. Preso e levado a julgamento, ele se diz “inocente por possessão demoníaca”.

O ritual de exorcismo e o assassinato realmente “aconteceram” - obviamente a “possessão” ganhou contornos espetacularizados no filme. Pouco importa, para o filme, que David e o irmão mais velho, Carl, tenham processado Lorraine Warren (Ed já havia morrido) e Gerald Brittle, autor do livro sobre o caso, dizendo que a possessão de David era uma brincadeira e que os Warren prometeram dinheiro para a família se eles sustentassem a história.

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Filme "Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio". Crédito: Warner/Divulgação

Deixando de lado a possível picaretagem dos Warren e o oportunismo de se vender o filme como uma história real, “Invocação do Mal 3” tem problemas narrativos, mas ainda assim deve atingir seu público. Sem James Wan no comando (o diretor estava envolvido com a direção de “Malignant” e a pré-produção de “Aquaman 2”), “Invocação do Mal 3” abandona também o que restava de sutileza e tensão na franquia.

Chaves, diretor do péssimo “A Maldição da Chorona” (2019), tenta dar mais peso a Arne, mas ele acaba esquecido pelo roteiro. Em cárcere, o personagem ainda sofre com a possessão, mas em momento algum o vemos às voltas com a culpa por ter matado uma pessoa. O arco de Arne, que deveria ser uma quebra de ritmo na narrativa principal, acaba se tornando um acessório para movimentar Ed e Lorraine.

“Invocação do Mal 3” ao menos tenta oferecer alguma novidade narrativa. Ao contrário dos dois primeiros filmes, com casos de casas assombradas, o novo texto oferece um caso mais amplo, com novas possibilidades e até uma dose de investigação policial. A causa do mal também é revelada logo no primeiro arco, na tal cena de exorcismo de David. O desenrolar do filme é uma busca diferente para os Warren, que tentam descobrir quem convidou aquele demônio àquela casa.

Ainda, o roteiro fragiliza a relação do casal de protagonistas e oferece uma inversão, com Lorraine mais à frente, comandando as ações. Vera Farmiga faz bom proveito desse protagonismo e segura bem o filme até mesmo nos momentos mais ridículos, quase risíveis, do roteiro.

Ter o filme em cenários mais abertos e à luz do dia também faz com que “Invocação do Mal 3” ofereça um frescor ao clima de ambiente fechado de seus antecessores. Essa ampliação de escopo, no entanto, também torna o filme menos tenso e mais previsível - é muito fácil saber o que vai acontecer e quando elas acontecerão.

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Filme "Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio". Crédito: Warner/Divulgação

Essa previsibilidade, porém, não impede os sustos quase sempre fáceis. “Invocação do Mal 3” tem trabalhos impecáveis de som a luz, brincando com as expectativas da audiência, adiantando ou atrasando um pouco o que todo mundo sabe que vai acontecer.

“Invocação do Mal 3” tem bons momentos, mas se leva a sério demais para tentar convencer como “baseado em fatos reais”. É quase irônico que a franquia tenha começado com uma história de terror capaz de estourar a bolha dos fãs no gênero agora se torne cada vez mais restrita a esse nicho. A narrativa de James Wan faz falta, assim como um mínimo de sutileza, mas Patrick Wilson e Vera Farmiga ainda são capazes de segurar o filme de pé mesmo nos momentos mais ridículos.

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