O terror, como gênero de cinema, sempre foi usado como alegoria para assuntos sociais. Da tão temida “ameaça comunista” de “Vampiros de Alma” (1956) ou do medo do conservadorismo dos primeiros filmes de George Romero, passando pelo conflito geracional (vencido pela família e pela igreja) de “O Exorcista” (1973), pelos traumas do slasher até chegar às questões mentais de “O Babadook”, o bom terror costuma ser muito mais do que uns fantasmas e uns sustos fáceis com a picaretagem de “história real” da franquia “Invocação do Mal”.
Em “A Espinha do Diabo” e “O Labirinto do Fauno”, dois de seus melhores filmes, o cineasta mexicano Guillermo Del Toro, lida com traumas e terrores da Guerra Civil Espanhola (1936 - 1939). Da Espanha, inclusive, vem um dos filmes de terror mais influentes dos últimos tempos, “[Rec]” (2007), que utiliza zumbis e “found footage” para escancarar os preconceitos da sociedade que veremos de forma parecida quando a pandemia de Covid-19 estourou, em 2020.
Diretor e roteirista de “[Rec]”, Paco Plaza volta agora com “Irmã Morte”, surpreendente terror da Netflix. O filme tem início em 1939, ano do fim da guerra, quando vemos algumas imagens em preto e branco, do que parece ser uma pequena comunidade num misto de medo e encanto em torno de uma criança, mas não é fácil entender o que acontece. O filme dá um salto temporal de dez anos, com a chegada de Narcisa (Aria Bedmar) a um convento/escola – outrora uma criança considerada milagrosa, a “menina santa de Peroblasco”, Narcisa agora é uma noviça prestes a se comprometer à vida de freira.
Logo que chega ao local, Narcisa sente haver algo diferente. Barulhos, vozes, objetos se mexendo sozinhos e um clima que apenas as alunas parecem entender. “Irmã Morte” constrói muito bem a tensão e o clima de mistério com a utilização do silêncio, de luzes e sugestão. Plaza entende que o que não se vê pode ser muito mais assustador do que é mostrado e, por isso, apresenta o terror primeiro no olhar dos personagens, principalmente das alunas. A cena em que Narcisa se apresenta a turma e desperta medo nas crianças é significante, pois elas sabem bem mais do que nós e a protagonista. O que, afinal, aquele convento esconde?
“Irmã Morte” lida com as agruras da Guerra Civil, e Plaza foge de qualquer sutileza quanto ao assunto já nos primeiros momentos, quando uma freira mostra as marcas de balas nas paredes e diz “tem marcas que nenhuma cal apaga”, mas não apenas isso. O filme espanhol da Netflix também lida com a culpa cristã oriunda de uma régua moral totalmente distorcida pela religião.
O filme se conecta diretamente com “Verônica” (2017), também de Paco Plaza, em seus momentos finais, um epílogo desnecessário que pouco faz sentido para quem não assistiu ao filme anterior (também disponível na Netflix). “Irmã Morte” funciona perfeitamente bem sem ser parte de um famigerado “universo compartilhado” e, vale ressaltar, é muito superior a “Verônica”.
O roteiro é simples, mas eficiente inteligente em suas escolhas. O filme nunca esconde haver algo no convento, nunca é suscitada a dúvida sobre a sanidade Narcisa ou alguma outra personagem, apenas se esconde a origem daquilo. As crianças falam sobre uma suposta “menina”, a protagonista encontra pistas e o mistério se desenrola. É verdade que algumas coisas não fazem sentido se analisadas mais friamente e que o filme depende um pouco demais de Narcisa ser ou não a tal “menina santa”, mas, ao fim, tudo funciona.
“Irmã Morte” é um terror sóbrio, que faz questão de se conectar a acontecimentos e medos reais sem depender de enganar o público para isso. O filme de Paco Plaza é enxuto, com menos de 90 minutos de duração, e uma grande mostra de que é possível fazer terror ao manipular os sentidos do espectador sem necessariamente enganá-lo.
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