“Kimi”, lançado pela HBO Max na última semana, é filme atípico a começar pela sua duração: 90 minutos. A minutagem, antes quase um padrão para o cinema comercial, se tornou a exceção em uma indústria em que boa parte dos grandes lançamentos se aproximam mais das três horas do que das duas de duração. Os motivos são variados e merecem outra coluna, mas a ascensão das séries e das narrativas prolongadas criou desafios para diretores e roteiristas criarem personagens e motivações que se resolvam em um espaço curto e sem a temida exposição.
“Kimi”, apesar da curta duração, é muito eficaz em no desenvolvimento de sua personagem principal. Quando conhecemos Angela (Zoë Kravitz), logo a identificamos como alguém que, após a pior fase da pandemia de Covid-19 passar, se mantém dentro de casa, trabalhando de home office, sofrendo com as obras dos vizinhos e observando de sua janela o mundo voltar à normalidade enquanto lida novos e antigos medos e anseios.
Angela é desenvolvedora da inteligência artificial que dá título ao filme, uma assistente virtual como Alexa, Siri, Cortana, entre outras - a diferença, segundo os executivos da empresa, é que a Kimi aprende de forma humana. Angela é uma das programadoras responsáveis por ouvir os áudios não compreendidos pelos dispositivos e corrigir o código para aquela demanda.
Um dia, porém, ela se depara com um áudio estranho, identifica um possível crime e logo tenta comunicar seus superiores. O problema é que a empresa já lida com diversas questões de privacidade e está prestes a oferecer suas ações para o mercado, ou seja, o caso poderia pegar muito mal.
A referência ao clássico “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock, é de fácil identificação e trazida para tempos pandêmicos. Em “Kimi”, as pessoas se conhecem pela janela e acompanham as rotinas dos vizinhos, o que fica claro da sequência de abertura do filme. O diretor Steven Soderbergh (que anunciou aposentadoria, mas nunca se aposentou) atualiza o clássico de Hitchcock para um mundo conectado, cheio de telas, e com a curiosa escolha de filmar a tela como a protagonista vê, reforçando a sensação de isolamento no espectador e o aproximando de sua heroína, uma mulher incapaz de sair de casa.
É interessante perceber como é necessário pouco desenvolvimento para que o público compreenda os medos de Angela, afinal passamos por isso não faz muito tempo. Soderbergh é excelente em retratar como Angela vê o mundo externo como uma ameaça; seu apartamento é barulhento, mas ela se sente em paz, em silêncio, com o fone de ouvido.
O cineasta também é muito eficaz na construção da personagem, feita no decorrer da trama e sem desperdiçar tempo. Apesar de segura dentro de sua casa, Angela nunca está totalmente confortável, o que fica exemplificado na dor de dente e e no semblante de quem apenas tolera a situação, mas já não se vê feliz com ela.
A mixagem de som transforma o mundo externo em uma ameaça ao potencializar buzinhas, carros, ônibus e vozes. Quando Angela finalmente precisa sair às ruas, o espectador divide com ela o não-pertencimento pela maneira incômoda que Soderbergh conduz seu filme em cenas no exterior, com câmera na mão sempre agitada e apressada para reforçar a sensação de paranoia de Angela e o medo de que tudo se feche sobre ela. O diretor, vale lembrar, assina também como diretor de fotografia e direção de câmera.
Em seu terceiro ato, quando ganha contornos de um thriller de ação, “Kimi” é frenético. A câmera é colocada no meio da ação enquanto Angela foge pelas ruas e confronta os capangas como se estivéssemos correndo atrás da personagem filmando com o smartphone ao ver algo estranho na rua.
“Kimi” é um filme aparentemente simples, mas que se destaca pelos detalhes e pela eficiência do roteiro. O texto está sempre em movimento e Zoë Kravitz encarna bem os traumas psicológicos de uma pandemia e as cicatrizes causadas pela vida. Soderbergh mostra que um filme curto não é um filme vazio se os responsáveis souberem aproveitar o tempo que têm, a diferença é que nem todo mundo tem o conhecimento de cinema e narrativa de Steven Soderbergh.
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