A essa altura ninguém mais fica em cima do muro quando o assunto é “La Casa de Papel”. Com a chegada dos últimos episódios à Netflix na última semana, a série espanhola chega ao fim talvez como o maior fenômeno global da plataforma de streaming. Assim, goste ou não, há de se reconhecer os méritos da série criada por Álex Pina; alguma coisa certa ele fez no meio do caminho.
A história do Professor e de seu grupo de assaltantes com máscaras de Dali nunca foi um primor narrativo ou de planejamento. Os roteiros muitas vezes eram entregues aos atores à medida que ficavam prontos, o que ajudava na impressão de ser tudo tão caótico quanto o que era visto em tela.
Em contrapartida, essa escolha da equipe de roteiristas também faz com que muita coisa não faça sentido na série - comportamentos que mudam repentinamente, decisões nem sempre muito espertas e algumas soluções pensadas exclusivamente pelo apelo visual. Sim, boa parte do sucesso de “La Casa de Papel” se deve ao apelo visual da série; das máscaras de Dalí às ótimas fotografia e design de produção, tudo colabora para tornar o produto mais atrativo.
À medida que o dinheiro foi entrando, ou seja, quando a Netflix entrou na jogada, a partir do que entendemos como sendo a terceira temporada, a série ganhou potência estética. Perceba como o Banco da Espanha é muito mais rico em detalhes do que a Casa da Moeda da série, ou como a narrativa partiu para lugares mais distantes e paradisíacos, como as FIlipinas, ou para o meio do nada, como uma plataforma de petróleo na Noruega.
O Banco da Espanha se tornou um campo de batalhas com estética de filmes de guerra. Quase sempre é noite (mesmo que seja dia lá fora), quase sempre há uma trilha sonora dramática, há fogo, destroços, explosões, trocas de tiros constantes… A série também faz bom uso de câmeras lentas para efeito dramático e, principalmente, da iluminação. Esses detalhes conferem grandiosidade a série e dão a ela grandes dimensões, mesmo que o que realmente importa seja o que se passa no local do assalto.
Isso, claro, nada seria sem um texto que deixasse o espectador entretido. Não se deixe enganar, “La Casa de Papel” tem um texto simples; planos ousados, claro, mas textos sem grandes ousadias narrativas. É por isso que quase sempre entendemos o que vai acontecer, entendemos ser tudo, desde a primeira temporada, parte de um incansável jogo de gato e rato que só desacelera quando o roteiro parte para o melodrama.
Vale repetir o “entendemos” porque a série nunca deixa nada sem explicação - tudo, absolutamente tudo, é didaticamente explicado. Se um personagem puxa o gatilho de uma arma sem balas, um flashback mostra o momento em que alguém tirou as balas, sem se importar de já ter sugerido isso anteriormente. Sabe o que fica sem explicação? Os absurdos.
“La Casa de Papel” parece pensada inicialmente em imagens e sequências icônicas. É como se alguém pensasse: “imagina que legal seria se a Tóquio voltasse à Casa da Moeda de moto no meio de todo mundo?” ou “vamos fazer um corredor do exército para o Professor finalmente encontrar seu bando”. Pouco importa o absurdo dessas cenas, o que importa é que elas são divertidas e marcantes. Sem a suspensão da descrença, ou seja, sem que o espectador aceite aquilo tudo sem questionar muito, o fenômeno espanhol da Netflix talvez tivesse menos sorte.
E por mais que este texto talvez pareça desmerecer a série, com certeza não é essa a intenção. Estou no grupo dos que se diverte com as viradas mirabolantes, os planos espetaculares e o comportamento pouco inteligente de algumas autoridades. Ainda, é necessário ressaltar o carisma dos personagens criados por Álex Pina, inclusive os secundários, e como, quando menos percebemos, estamos preocupados com seus destinos.
Muito disso se dá em decorrência do já citado melodrama, dos momentos em que “La Casa de Papel” abraça, sem vergonha alguma, as influências de novelas brasileiras, mexicanas e venezuelanas que fizeram sucesso na Espanha. Em meio a um assalto complexo e ao risco de morte, há romances, relações familiares e vínculos de amizade, há declarações de amor e beijos entre pessoas com fuzis nas mãos.
Essas relações ajudam a aproximar o espectador daquelas pessoas. É tudo espetacular e distante da realidade do espectador, mas eles também têm sentimentos como os de quem está no sofá, têm assuntos mal-resolvidos com a família e sofrem por amor. Ajuda também que as forças policiais não sejam exemplos de honestidade - tal qual as pessoas que cercam o Banco da Espanha na série, a audiência torce pelos azarões, por quem luta contra o sistema.
É importante destacar o entendimento do texto de que seria necessário matar seus personagens, mesmo que às vezes os traga de volta. Na primeira temporada, Berlim foi construído como um sujeito repugnante, um personagem pronto para morrer com uma redenção, mas o público se apegou e ele se tornou fixo em flashbacks, com direito a uma injustificável relevância em toda a série e configurando o ponto mais fraco da narrativa inteira.
Ainda assim, para uma história com tantos tiros e explosões, “La Casa de Papel” tem poucas mortes gratuitas - não tiveram coragem nem de matar o insuportável Arturo. Quando elas acontecem, significam uma mudança nos personagens, na dinâmica entre eles. Alguns coadjuvantes já haviam morrido antes, mas foram as mortes das queridas Nairóbi e Tóquio que movimentaram o texto e lembraram o público de que ninguém está seguro, além de funcionarem como grandes ganchos para os próximos episódios.
“La Casa de Papel” acabou vítima do hype e da própria popularidade, mas nem seus criadores e tampouco a Netflix parecem ter se incomodado com os críticos. Com os ótimos números, a plataforma já encomendou um derivado com Berlim para 2023 e uma versão coreana da série. Foi meio ao acaso, ninguém realmente esperava, mas a mistura de bagaceira e cinema de ação contemporâneo, embalada pelo hino anti-fascista “Bella Ciao”, que virou funk, forró, ska e até canção de ninar, é um dos grandes marcos da cultura pop recente e o será por muitos anos. Novamente, você pode não gostar, mas alguma coisa certa Álex Pina fez nessa jornada.
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