Escrevo esta coluna com uma “live” rolando na tela ao lado (sim, adaptei duas telas ao home office). Enquanto teclo, o músico britânico Frank Turner canta as músicas do disco “Tape Deck Heart” na sala de casa, voz e violão, para arrecadar doações para casas de shows independentes na Inglaterra. Fato curioso: Turner teria vindo pela primeira vez ao Brasil em abril. A turnê, claro, foi cancelada.
As “lives”, obviamente, não substituem os shows - nem para o público, que assiste a tudo no máximo dançando pela sala de casa, e muito menos para o artista, que normalmente vive de seus cachês. As apresentações têm servido para diversas causas, de arrecadação de alimentos e álcool em gel para instituições de caridades a fundos de auxílio para teatros e trabalhadores das artes em geral.
As “lives” (por que não chamá-las de “ao vivo”?), assistidas por milhões de pessoas, reforçam também realidades e preocupações distintas dos artistas. Alguns optaram por superproduções, com várias pessoas envolvidas mesmo tempo de isolamento - Jorge & Mateus e Bruno & Marrone - e patrocínios de cervejas, aplicativos de entrega e grandes lojas. Outros grandes nomes, como Pato Fu, Nando Reis, Fresno, Marília Mendonça e até Sandy & Junior, preferiram algo menos espetaculoso; o “ao vivo” dos filhos de Xororó foi bem em clima familiar mesmo contando com banda, com Junior e Lucas Lima (marido de Sandy) se alternando em instrumentos enquanto o pai cuidava do som.
Muita treta!
Bruno, da dupla com Marrone, foi criticado por encerrar a live com os dizeres da campanha do atual presidente (“Brasil acima de todos…”), além de beber um pouco além da conta, mas outras apresentações também tiveram suas particularidades. Gusttavo Lima está sendo processado pelo Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) por fazer propaganda indiscriminada de bebidas alcóolicas em seus “ao vivo” - o sertanejo se diz alvo de censura e ganhou apoio do presidente nas redes sociais.
Já César Menotti & Fabiano tiveram sua apresentação tirada do ar no YouTube. Os dois, claro, logo acusaram a plataforma de censura, mas a ação foi da Som Livre, a gravadora dos cantores (reviravolta!) que não respeitaram as regras publicitárias do serviço de vídeos da Google. Para evitar esses problemas, os sertanejos estão até criando a própria plataforma de “lives”. É esperar pra ver.
Como nem todo mundo é Jorge & Mateus, Ivete Sangalo, Bell Marques ou Sandy & Junior para lucrar com patrocínios, as lives podem servir ainda para garantir uns trocados para os músicos. “Como fazer show é minha principal fonte de renda, tenho feito as lives como shows. E a galera tem contribuído espontaneamente, tem sido uma forma de levantar alguma renda para mim, uma das soluções de imediato”, conta o capixaba André Prando, que além de realizar apresentações de seu trabalho autoral e algumas temáticas (Belchior, Raul, Alceu Valença), participou do Festival Sérgio Sampaio em sua versão on-line nas últimas semanas.
Acontece que nem todo mundo é André Prando também. Há toda uma cadeia de produção na indústria da música que acaba esquecida - estúdios, produtores, músicos contratados, roadies, etc; profissionais que não vão ganhar patrocínio em “lives” e que dependem da movimentação da cadeia produtiva.
As “lives” são legais, uma solução temporária que provavelmente vai ganhar sobrevida quando o isolamento acabar, uma apresentação menos custosa do que um DVD, mas ainda assim rentável. O sertanejo já entendeu isso e outros gêneros logo devem encontrar uma maneira de seguir o mesmo caminho. Talvez estejamos diante de uma revolução de costumes e ainda não tenhamos percebido.
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