Com toda popularidade da cultura coreana dos últimos anos, da ascensão do k-pop ao Oscar de “Parasita”, passando por “Round 6” e a febre de séries coreanas na Netflix, permanece interessante uma das características principais desses conteúdos, não buscar a ocidentalização a qualquer custo. A influência da indústria americana é óbvia e até inevitável em um aspecto global, mas a cultura coreana tem força própria para criar uma identidade, uma assinatura que impede que suas obras se transformem em pastiches de outras culturas.
Apesar do nome em inglês, “Love to Hate You” é uma obra totalmente coreana. Lançada pela Netflix, a série, em dez episódios, explora algumas questões tipicamente locais, como o machismo na sociedade sul-coreana, principalmente no mercado de trabalho. Conhecemos Yeo Mi-ran (Kim Ok-vin), uma jovem advogada com dificuldade de encontrar emprego em Seoul. Mi-ran é uma mulher livre, não tem problemas em tratar os homens como objetos de desejo e até os classifica em categorias. Ela só não tolera homens tóxicos e violentos, reservando a eles um tratamento especial, como visto na cena de abertura da série.
Do outro lado, também encontramos Nam Kang-ho (Teo Yoo), um famoso ator de comédias românticas de reputação ilibada, mas com quem as atrizes não parecem gostar muito de trabalhar. Kang-hoo é misógino, uma metralhadora de comentários e comportamentos machistas, mas seu carisma, e seu ótimo empresário, Do Wun-jun (Kim Ji-hoon) fazem com quem ninguém enxergue quem ele realmente é. Isso, claro, até seu caminho se cruzar com o de Yeo Mi-ran, que faz da exposição do ator sua grande obsessão.
As coisas mudam quando Mi-ran consegue um emprego em um escritório que tem grandes estrelas como clientes - ela é a primeira advogada mulher da empresa e só foi contratada porque uma atriz exigiu uma mulher como representante legal. A empresa, é claro, é a mesma que representa Kang-ho, o que aproxima os dois imediatamente, mesmo contra a vontade do ator.
“Love to Hate You” é uma comédia romântica e tem a estrutura clássica do gênero, com opostos forçados a habitar o mesmo espaço e, ocasionalmente, desenvolvendo um interesse mútuo. A série tem humor característicos das produções sul-coreanas como “Uma Advogada Extraordinária”, por exemplo, e até pega emprestado do sucesso da Netflix alguns recursos estéticos mais lúdicos. A trilha sonora (presente em praticamente todos os momentos) também deixa claro o tom de humor pastelão da série, mesmo que, em algumas cenas mais dramáticas ou até mesmo de suspense, ela soe totalmente deslocada.
Apesar do tom sempre leve, a discussão da série é interessante. Mi-ran é a representante de uma nova Coreia do Sul, um país moderno em busca de quebrar o conservadorismo social que acompanha a cultura oriental. O incômodo gerado por ela no escritório, onde são feitas várias piadas sobre ela, e até mesmo em seu núcleo familiar, pois seu pai era contra seus estudos, representam a Coreia antiga, conservadora, uma estrutura que ainda precisa ser convencida da capacidade de uma mulher e de sua independência de viver à sua maneira. O discurso, vale ressaltar, é sempre leve.
Mi-ran é uma personagem muito mais interessante e complexa do que seu par. Ela é inteligente, boa de briga e adora fingir estar dentro dos padrões, se comportando como os homens esperam que ela aja, para fugir de alguma enrascada. Kang-ho, além de uma história mais chata, um arco de redenção, também é levemente imbecilizado (como boa parte dos personagens homens). Quando reunidos pelas coincidências do roteiro, que os torna um casal meio que a contragosto, Ok-bin e Yoo funcionam muito bem, mas ela é o destaque absoluto da série.
“Love to Hate You” pode até causar um estranhamento para quem não está acostumado às narrativas coreanas, parecer ingênua ou boba, mas ela cumpre muito bem o que se propõe a fazer. A narrativa às vezes cansa justamente por essa ingenuidade e pelo humor meio pastelão, mas nada grave. Ao fim, “Love to Hate You” é uma divertida comédia romântica, uma obra de fácil consumo, com linguagem global, mas que carrega a assinatura da Coreia do Sul.
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