Crítico de cinema e apaixonado por cultura pop, Rafael Braz é Jornalista de A Gazeta desde 2008. Além disso é colunista de cultura, comentarista da Rádio CBN Vitória e comanda semanalmente o quadro Em Cartaz

"Mães Paralelas": poderoso novo filme de Almodóvar chega à Netflix

Em "Mães Paralelas", na Netflix, o lendário cineasta espanhol Pedro Almodóvar parte da maternidade de duas mulheres para resgatar as dores políticas da Espanha

Vitória
Publicado em 18/02/2022 às 04h35
Filme
Filme "Mães Paralelas", de Pedro Almodóvar. Crédito: Netflix/Divulgação

As obras do lendário cineasta espanhol Pedro Almodóvar nunca foram de fácil definição. O diretor vai da comédia de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” ou “Os Amantes Passageiros” a dramas intrincados como “Fale com Ela” ou histórias pessoais como “Má Educação” e “Dor e Glória”, sempre mantendo sua assinatura e seu estilo único independente do gênero que esteja filmando. Assim, não é necessário muito tempo para perceber que “Mães Paralelas”, disponível na Netflix, é um filme de Almodóvar. É curioso que mesmo que saibamos disso e reconheçamos o cinema do cineasta espanhol no filme, ele ainda é capaz de nos surpreender a cada virada.

Indicado a dois Oscar (Melhor Atriz e Trilha Sonora Original), “Mães Paralelas” tem Penélope Cruz como Janis, uma renomada fotógrafa chegando aos 40 anos que se envolve com o arqueólogo Arturo (Israel Elejalde) após consultá-lo sobre a possibilidade de escavação em uma antiga vala. No local, segundo ela,  falangistas de Francisco Franco enterraram vários corpos de opositores à Guerra Civil Espanhola e a subsequente ditadura franquista.

Janis engravida e decide ter a criança, um sonho antigo, ponto no qual o filme salta para os momentos que antecedem o parto. É quando a fotógrafa conhece Ana (Milena Smit), uma jovem solteira de 20 e poucos anos também prestes a dar à luz. As duas se conectam de imediato e mantêm contato após o nascimento das respectivas filhas.

Almodóvar aproveita o início do filme para construir suas personagens centrais como mães. Tanto Janis, órfã de uma hippie e criada pela avó, quanto Ana, cuja mãe nunca esteve realizada como tal, são dedicadas, carinhosas e atenciosas, oferecendo às filhas tudo o que elas não tiveram. Aos poucos, as vidas delas passam a se entrelaçar de forma que o filme se distancia cada vez mais do “paralelas” de seu título.

Filme
Filme "Mães Paralelas", de Pedro Almodóvar. Crédito: Netflix/Divulgação

A construção de mundo de Almodóvar é mais uma vez impecável, nos fazendo sentir como se conhecêssemos aquele ambiente e estivéssemos perto daquelas pessoas. Nas cenas interiores, o vermelho divide espaço com cores mais claras como pano de fundo para as emoções das personagens embaladas pela trilha sonora do paceiro habitual Alberto Iglesias (indicado ao Oscar).

“Mães Paralelas” é, em sua essência, um melodrama com forte influência estética de novelas latinas. Em grandes atuações, Penélope Cruz e Milena Smit são as protagonistas ideais para dar vida às personagens de Almodóvar, duas mulheres completamente diferentes, mas com algo que as conecta. A relação entre elas é natural desde o primeiro momento e nunca parece apressada pelo roteiro, o que impressiona devido aos saltos temporais do texto - cada salto representa também um avanço na relação.

Filme
Filme "Mães Paralelas", de Pedro Almodóvar. Crédito: Netflix/Divulgação

É claro que, em se falando de Almodóvar, Janis e Ana terão complicações em suas vidas, mas o cineasta prefere dar ênfase à maneira como elas lidarão com os conflitos e não torná-los os coadjuvantes. Assim, “Mães Paralelas” ganha profundidade e dramaticidade em alguns clímax diferentes durante o filme.

“Mães Paralelas” é sobretudo um inesperado drama político. Organicamente, o filme trata dos privilégios sociais e, principalmente, de política espanhola. Almodóvar introduz em sua narrativa a dor causada pelo regime fascista de Francisco Franco, curiosamente um cenário que o diretor pouco explorou em sua carreira. Seu primeiro filme, “Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas”, de 1980, se esforçava justamente para mostrar uma Espanha pós-Franco, cuja sanguinária ditadura durou quase 40 anos e só se encerrou com sua morte, em 1975.

Ao longo das décadas seguintes, Almodóvar voltou seu olhar para outras amarras diretamente ligadas à repressão na qual nasceu, como os dogmas do catolicismo, a sexualidade e diversas questões comportamentais e sociais de seu país, mas sempre deixava a ditadura em segundo plano, preferindo tratar de suas cicatrizes.

Em “Mães Paralelas”, o anseio de Janis pela escavação da vala em que seu bisavô e outros homens estão enterrados não se dá por algum senso de justiça, mas para mostrar à geração de Ana as dores causadas pelo fascismo antes que elas caiam no esquecimento ou ganhem narrativas “paralelas” como vem acontecendo no Brasil. Janis representa a Espanha progressista, a geração que cresceu pós-ditadura, enquanto Ana vive as liberdades conquistadas pelas gerações anteriores sem grandes preocupações sociais.

“Mães Paralelas” é um drama poderoso com várias camadas que se conectam de forma surpreendentemente natural, fruto do talento de um cineasta especialista em construir narrativas. Partindo da maternidade, o texto conecta gerações para contar histórias que a Espanha, ainda sob influência de Franco e seus seguidores que hoje têm cargo de poder, escondeu por muito tempo - ainda hoje, são mais de 100 mil corpos não identificados de pessoas dadas como desaparecidas durante a Guerra Civil e a ditadura franquista.

A Gazeta integra o

Saiba mais
Cinema Netflix Rafael Braz Streaming

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.