Ainda muito mal divulgada no Brasil, a AppleTV+ tem expandido seu catálogo de forma impressionante. O serviço ainda é mais conhecido por séries como “Ted Lasso” ou “The Morning Show”, suas atrações mais populares, mas obras como “For All Mankind”, Black Bird”, “Trying”, “Pachinko”, “Mythic Quest” merecem uma audiência muito maior. É verdade que a plataforma carece de (muita) melhoria, principalmente para quem não é usuário de dispositivos Apple, mas seus lançamentos estão cada vez mais difíceis de serem ignorados.
Recém-lançada, “Mal de Família” faz ótimo proveito do sucesso recente dos “whodunnit”, das adaptações de Agatha Christie e seu Hercules Poirot para os cinemas, passando pelo ótimo “Entre Facas e Segredos” até chegar em séries como a imperdível “Only Murders in the Building” ou a apenas razoável “Now and Then” (da própria Apple). A nova série da AppleTV+ é uma adaptação britânica para a série belga “Clan”, não lançada no Brasil, e mistura suspense, humor e drama com excelência.
A série acompanha cinco irmãs, Eva (Sharon Horgan), Ursula (Eva Bithistle, de “The Last Kingdom”), Bibi (Sarah Greene), Becka (Eve Hewson, de “Por Trás dos Seus Olhos”) e Grace (Anne-Marie Duff). As conhecemos no dia do enterro de John Paul (Claes Bang, de “The Square: A Arte da Discórdia”), marido de Grace, e logo fica claro haver alguma animosidade entre as cunhadas do falecido.
A narrativa então se transporta para seis meses no passado, durante um jantar na véspera de Natal em que encontramos todas as irmãs, alguns filhos e também John Paul. Neste momento conhecemos o motivo da animosidade - o marido de Grace é racista, homofóbico, misógino e controlador com a esposa e a filha, praticamente sugando de Grace toda sua alegria de viver.
A série então passa a se alternar entre a narrativa antes da morte de John Paul e aos dias que sucedem o enterro, quando o texto introduz os irmãos Thomas (Brian Gleeson, filho do ótimo Brendan Gleeson) e Matthew (Daryl McCormack, em destaque com o sucesso de “Boa Sorte, Leo Grande”), donos da seguradora com a qual o falecido tinha um contrato. O problema é que a empresa dos irmãos está à beira da falência e, por isso, eles tentam ao máximo evitar o pagamento do seguro que os levaria à falência.
“Mal de Família” é ótima desde seu primeiro episódio, quando tem o cuidado de apresentar cada personagem com calma, sem a ânsia de entregar tudo de imediato. Vamos conhecendo as irmãs gradualmente, pelas cenas e pelos diálogos de ambas as narrativas, e construindo as figuras em nossa cabeça. Percebemos Eva, a mais velha, como uma figura materna para as outras quatro, e talvez venha daí a não-aceitação dela com o tóxico relacionamento de Grace; entendemos Becka, a caçula, como uma jovem mimada e a fim de curtir a vida… Cada uma tem suas características e o roteiro trabalha bem isso.
Desde o início, “Mal de Família” é ótima em construir John Paul como um sujeito insuportável, nos levando quase a a uma alegria com sua morte, afinal, o texto nos leva a querer matá-lo também (mas é tudo ficção…). Da mesma forma, a série já mostra haver algo errado - “ela nunca pode descobrir o que fizemos”, diz uma das irmãs em relação à viúva.
“Mal de Família” é um ótimo suspense, mas tem um humor peculiar nas falas, que evocam gargalhadas em momentos completamente inusitados. É nesses momentos que a série se desenvolve dando destaque ao que fica subentendido, com muito pouca exposição desnecessária.
Eva e Bibi têm mais destaque inicialmente, mas a série garante arcos para todas as irmãs, com destaque para Becka, personagem que talvez pela imaturidade da idade, garante arcos mais complexos e até que se relacionam melhor com o público. Eve Hewson é ótima no papel, uma redenção após a constrangedora “Por Trás dos Seus Olhos” e fazendo o espectador se lembrar de sua ótima atuação em “The Knick”.
A série trata de temas como casamento, família e relações abusivas com naturalidade, destacando a individualidade de cada irmã, mas também mostrando como o que prejudica uma prejudica o total - as irmãs Harveu funcionam como uma engrenagem, com cada uma operando em uma função específica. Essa individualidade é destacada pelo trabalho da figurinista Camille Benda, que dá identidade imediata a cada personagem sem se esforçar muito.
Ao longo dos dez episódios, a série se esforça para que nós, os espectadores, torçamos para personagens diferentes em diferentes momentos. Em alguns episódios, torcer pelos irmãos da seguradoras é inevitável; em outros, porém, são as irmãs Garvey, as protagonistas, que ganham a torcida do público. Ao fim, é interessante como a série nos leva à identificação com mulheres que planejam matar o marido da irmã delas.
“Mal de Família” é ótima e merece sua atenção. Uma série divertida, bem construída, com um texto primoroso e atuações que prendem a atenção do espectador. É quase inaceitável que uma série como “Echoes”, lançada pela Netflix, tenha mais audiência que o lançamento da Apple, que precisa entender que ter um catálogo excelente não é o suficiente, é necessário saber embalar suas produções e vendê-las da mesma forma que faz com seus dispositivos tecnológicos.
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