É curioso como parte do material original de divulgação de “Mammals”, nova série da Amazon Prime Video, adjetiva Amandine (Melia Kreiling), uma das protagonistas, como “exótica” apenas por ser francesa. É quase como se, com uma boa dose de estereótipo, o material já tente previamente justificar o comportamento da personagem nos seis episódios da série, mas talvez eu esteja me adiantando…
“Mammals” tem início com Jamie (James Corben) e Amandine, grávida, chegando a uma casa em um lugar meio paradisíaco, no meio do nada, onde logo descobrem ter o cantor Tom Jones como vizinho (o que não faz diferença alguma, só introduz um tom meio absurdo à série). Lá, conhecemos inicialmente o casal em diálogos rápidos, demonstrando uma cumplicidade invejável e uma sensação de encantamento mútuo.
Não demora, porém, para Amandine sangrar durante o banho e o casal partir para o hospital mais próximo. Com a notícia do aborto espontâneo, Amadine pede que Jamie ligue para seus familiares e amigos. Mas, com o telefone da esposa em mãos, ele recebe umas mensagens picantes e descobre que sua amada o está traindo. Como agir diante disso?
A princípio, “Mammals” parece se aproximar de uma narrativa ao estilo “The White Lotus”, mas essa impressão inicial se dissipa aos poucos. É interessante como só depois da descoberta da traição é que realmente conhecemos Jamie e Amandine em um processo de desconstrução de personagens. A série nos induz à criação, em nosso imaginário, de uma relação convencional, mas a narrativa criada por Jez Butterworth (roteiristas de filmes como “Ford vs. Ferrari” e “No Limite do Amanhã”) e dirigida pela ótima Stephanie Laing (“Physical” e “Made for Love”) é tudo, menos convencional.
Jamie, um chef abrindo seu próprio restaurante e consumido pelo processo, não sabe como lidar com as novas informações e acaba adotando uma postura passivo-agressiva diante da esposa. Justamente por esse comportamento do protagonista, a série nos surpreende quando toma outros rumos, mas nenhum spoiler será revelado além da própria premissa da série. O grande questionamento é que, sem saber que o marido sabe de seu caso, Amandine demonstra por ele o mesmo amor de sempre, ou seja, vale a pena comprometer o relacionamento pelo qual ambos parecem prezar tanto?
Em seis episódios curtos, “Mammals” faz escolhas narrativas às vezes questionáveis, a principal delas é introduzir e desenvolver relacionamento da irmã de Jamie, Lue (Sally Hawkins), com Jeff (Colin Morgan), um arco que compromete tempo de narrativa que poderia ser aproveitado com o que faz, de fato, a série caminhar; é com Lue, no entanto, com entendemos estar diante de algo diferente, quando ela passa a se colocar como personagem do livro que está lendo. Ainda assim, o tempo do segundo ato da série poderia ser melhor aproveitado no desenvolvimento de algumas relações e histórias apenas pinceladas, como Greta, filha dos protagonistas, por exemplo.
No processo de desconstrução de Jamie e Amandine, voltamos ao ponto em que eles se conhecem e muito se explica a partir dali. “Mammals” parece sentir um prazer sádico ao confundir o espectador, a deixar a impressão de haver buracos na trama ou relações mal explicadas, mas a verdade é que a série foi pensada para seguir esse caminho oposto. O roteiro é sutil o suficiente, em alguns momentos, para deixar a impressão de que o espectador realizou uma grande descoberta sem perceber ter sido meticulosamente conduzido para isso.
Em outros momentos, porém, “Mammals” se aproxima da exposição ao reforçar mais de uma vez o comportamento de espécies mamíferas (“mammals”) em frases como “eles vivem nas profundezas, mas precisam da superfície para respirar” ou “poucas são as espécies de mamíferos que formam vínculos longos durante a vida”. Esse reforço deixa claro que a grande protagonista da série (ou talvez a antagonista) seja a instituição relacionamento monogâmico.
Como em um texto shakesperiano, a série constrói seu humor a partir da tragédia, dando a seus personagens uma jornada infernal para que o possível final feliz deles seja justificado diante do olhar do público. Assim, há momentos de pura comédia e outros de riso nervoso, sem graça, quase de vergonha alheia.
James Corben, contido na medida certa, se sai bem como o sujeito com plena ciência de estar casado com uma mulher “muita areia para o caminhãozinho dele”. Essa sensação é transmitida ao público logo no primeiro episódio, quando eles chegam à casa alugada, momento que também apresenta Amandine como uma força da natureza, uma mulher bonita, charmosa e engraçada, uma daquelas pessoas que atraem olhares em qualquer ambiente. o que ainda não justifica o “exótico” do material de divulgação - a série, vale ressaltar, nunca parte por esse caminho.
Confiando muito na suspensão da descrença de seu público e até dependendo dela, em vários momentos “Mammals” fez com que eu me questionasse qual o sentido de determinados pontos em um contexto maior. Alguns arcos ainda parecem deslocados do resto da trama, mas, ao fim, a série funciona pela maneira como tudo se encaixa e por se tornar melhor à medida que nos afastamos dela, pensando sobre o que vimos, nos significados tanto das sutilezas e quanto dos discursos diretos.
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