Logo no início da segunda temporada de “Manhãs de Setembro”, que chega à Amazon Prime Video na noite de quinta (22), Cassandra (Líniker) conversa com seu pai, Lourenço (Seu Jorge), de quem se afastou há bastante tempo. “Você acha que foi fácil pra mim?”, questiona ela, falando sobre as dificuldades de uma mulher transgênero em uma pequena cidade do interior do Paraná; “E para mim? Você acha que foi fácil?”, responde Lourenço.
Mesmo que a comparação não seja exatamente justa, ela serve para dar o tom da nova temporada da série da Amazon Prime Video. Enquanto a primeira temporada nos apresentava o universo da série, com personagens complexos e falhos, sem heróis, vilões ou estereótipos de gênero, os novos seis episódios convidam à empatia de forma mais direta, sempre em busca da compreensão da dor do outro.
É a primeira vez que a transexualidade de Cassandra é tratada de forma agressiva pelo texto - quando ela reencontra um colega de escola que faz piadinhas, parte para o enfrentamento e tem em Leidi (Karine Telles) seu porto seguro. “A transfobia a gente tem que silenciar para que a violência não aumente. Sempre que existe um momento de paz, surge algum transfóbico, algum racista para atravessar nosso eixo”, diz Líniker, em entrevista. “A pior coisa é sofrer a violência e ainda ter que educar. Não tem dor maior do que ser atravessada por várias coisas horríveis e ainda ter que explicar para a pessoa que ela está sendo transfóbica”, completa.
A cena é importante para a trama, pois coloca Cassandra e Leide do mesmo lado, convidando a personagem de Karine Telles a sentir empatia pela protagonista., Cassandra não tem para onde correr, mas tem o apoio, mesmo que silencioso, de Leide, e mais uma vez temos a empatia, a dor do outro, como tema central de “Manhãs de Setembro”.
Em seis episódios, a segunda temporada tem início com Cassandra, Leide e Gersinho (Gustavo Coelho) retornando de Curitiba, viagem que encerra a primeira leva de episódios. Com o carro quebrado, a opção é chamar Lourenço, um mecânico de beira de estrada, para ajudar o trio. É quando a série apresenta também Ruth (Samantha Schmütz), esposa de Lourenço, e quem recebe os viajantes de braços abertos.
Apesar das boas histórias e do texto bem-humorado, “Manhã de Setembro” tem seu grande mérito na maneira como constrói seus personagens e na naturalidade dos diálogos. É impressionante como nada na série parece forçado ou fora do tom. Os personagens são falhos - Lourenço ainda insiste em chamar Cassandra pelo nome de batismo e se entende quase traído pela filha que criou praticamente sozinho.
Na nova temporada, muito do que foi construído anteriormente é subvertido, inclusive a paixão de Cassandra pro Vanusa e sua busca pela mãe. É quando ela percebe ter abandonado o amor e os cuidados do pai para buscar uma figura imaginária que optou por deixá-la. A voz de Vanusa (Elisa Lucinda) está ainda mais presente na narrativa, conversando e, principalmente, discutindo com Cassandra.
“Vamos entender o que a voz representa na vida da Cassandra. Ela é cruel, vamos entender a totalidade dela e ver a solução desse conflito interno”, conta o diretor, Luis Pinheiro. De fato, a voz representa a luta de Cassandra por sua liberdade, sua individualidade. A voz é egoísta, briga com o afeto da protagonista por Gersinho e com a maternidade que Cassandra nunca imaginou vivenciar. A maternidade é um tema também nos arcos de Leide e brevemente com Ruth, com a síndrome do ninho vazio.
Líniker
Cantora e atriz
"A pior coisa é sofrer a violência e ainda ter que educar. Não tem dor maior do que ser atravessada por várias coisas horríveis e ainda ter que explicar para a pessoa que ela está sendo transfóbica"
“Manhãs de Setembro” é uma história que não busca o conflito, mas a reconciliação. O reencontro de Cassandra com o pai é bonito, mas a descoberta da existência de Gersinho por Lourenço é um ponto de transformação. Essas relações são possíveis pelo texto de Josefina Trotta, Alice Marcone, Marcelo Montenegro e Carla Meirele, e reforçadas pelas atuações gigantescas de todos que ganham as telas.
Líniker está mais confortável como uma Cassandra ironicamente mais desconfortável, vendo seu mundo desabar - a selva de pedra já não é mais tão libertadora e ganha ares opressores. Já Karine Telles é um dínamo, uma figura que domina a tela e da qual é impossível tirar os olhos. Gustavo Coelho continua trazendo a inocência e a ideia de que são os adultos que complicam o mundo. Os diálogos de Gersinho com o avô são ótimos e nos ajudam a entender também Lourenço, um homem preto em uma cidade pequena do Paraná, pai de uma mulher transexual e se ressentindo por talvez não ter sido o homem que queria ser.
O interessante é que, por mais que seja possível analisar “Manhãs de Setembro” por diferentes camadas, ela ainda é uma história de fácil assimilação, uma jornada de autodescoberta e de transformação não apenas para os personagens, mas também para quem os acompanha de casa. A série acerta ao tratar o que a sociedade julga diferente com normalidade, com particularidades, claro, mas com dores e prazeres iguais aos de histórias das quais a diversidade passa longe.
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