Uma das características mais legais da produção audiovisual dos últimos anos é a maneira como os textos passaram a tratar as características de seus personagens como naturais. Independente de cor de pele, orientação sexual, gênero, os filmes e séries deixaram de tratar essas características como o principal conflito de um roteiro. Assim, passamos a ver menos os estereótipos, a figura do amigo homossexual engraçado, do preto raivoso ou do gay trágico, por exemplo. Esses aspectos, por anos retratados como conflitos sociais e familiares, agora são mostrados apenas como o que são, características individuais.
“Manhãs de Setembro”, que chega nesta sexta (25) à Amazon Prime Video, dá um passo adiante nessa nova construção de personagens. Em cinco episódios, a série acompanha Cassandra (Líniker), uma mulher batalhadora que finalmente vê as coisas dando em certo em sua vida. Motogirl em São Paulo, ela conseguiu alugar seu próprio apartamento, tem um namorado carinhoso, Ivaldo (Thomas Aquino), e trabalha na noite como cantora cover de Vanusa.
Cassandra tem nos amigos a sua família, o seu ciclo de acolhimento. A questão é que, um belo dia, Leide (Karine Teles) reaparece em sua vida com uma criança de 10 anos, Gersinho (Gustavo Coelho), fruto de uma noite ébria entre Leide e Cassandra, que na época ainda atendia por Clóvis.
A reação inicial é não apenas de espanto, mas de negação - Cassandra não quer uma criança demandando seus esforços justamente quando sua vida começa a caminhar. Além de ver Gersinho como empecilho, ele também é uma lembrança de outra vida para a protagonista, de algo que ela tinha deixado no passado e com que agora tem que lidar. Gersinho não liga nem um pouco para o fato de Cassandra ser uma mulher trans, mas a chama de “pai”. Ela, afinal, representa a figura paterna que ele nunca teve.
É interessante como, ao deixar de lado os conflitos clichês que permeiam as tramas de protagonismo LGBTQIA+, “Manhãs de Setembro” ganha tempo para desenvolver seus personagens. Ivaldo, o namorado de Cassandra, por exemplo, é pai e entende a importância dela estar com o filho mesmo que isso signifique não ter mais tanto tempo para ele.
Por sua vez, Cassandra sem perceber repete os comportamentos de sua mãe e de sua ídola, Vanusa, que priorizaram as carreiras e abandonaram as respectivas famílias. A cantora, vale ressaltar, está presente o tempo todo em “Manhãs de Setembro”, desde a canção que dá título à série às conversas, na voz de Elisa Lucinda, com Cassandra. A dinâmica entre as duas lembra muito à do livro “Slam”, de Nick Hornby, no qual um adolescente “conversa” com seu ídolo, o skatista Tony Hawk, sobre assuntos cotidianos.
“Manhãs de Setembro” é uma trama de personagens e sentimentos complexos. O cuidadoso roteiro evita maniqueísmos e brinca com as expectativas da audiência. Por diversas vezes, Leide tem comportamento reprovável, mas relativizamos quando lembramos ser a primeira vez em 10 anos que há outra pessoa para se preocupar com Gersinho e ela se permite mentir para aproveitar um pouco. Com Cassandra não é diferente. Líniker tem uma atuação de camadas e sua personagem vai amolecendo com o tempo, revendo suas escolhas e seus comportamentos em relação ao filho e ao namorado. Não há vilões ou heróis, todos são imperfeitos e erram durante os cinco episódios.
A dinâmica de ambas atrizes é potencializada pelo resto do elenco. Thomas Aquino está ótimo e elenco de apoio ainda tem Paulo Miklos e Gero Camilo como um ótimo e improvável casal, além de Clodd Dias, Isabela Ordoñez e Gustavo Coelho. O intérprete do jovem Gersinho se destaca pela inocência no olhar e pela química com os atores mais veteranos - seus diálogos com Isabela Ordoñez merecem destaque.
“Manhãs de Setembro” é uma obra que foge dos estereótipos para colocar em tela outros aspectos das vidas de pessoas LGBTQIA+. Tratar essas questões além do drama do gênero ou da orientação de cada um possibilita que a série normalize a existência dessas pessoas, que não são representadas como excluídas ou párias - ser gay, hétero, trans cis ou assexuado não é o tema da série. A diversa sala de roteirista de Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro conseguiu criar uma Cassandra independente, batalhadora, com amigos, namorado, emprego e hobbies, ou seja, uma vida como tantas outras, “o imaginário real de pessoas trans”, como disse Líniker em entrevista.
Em sua segunda grande produção nacional, após a excelente “Dom”, a Amazon acerta na representatividade e na qualidade - o estúdio fez questão de que Cassandra fosse dublada por mulheres trans mundo afora. Com questões universais, mas com uma pegada bem brasileira, “Manhãs de Setembro” é uma série forte, sobre temas sérios e pessoas complexas, mas não abre mão do humor em ótimos diálogos. É uma série construída em camadas diversas, assim como seus personagens, pois a vida nunca é tão simples.
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