Rabo de Peixe é uma pequena vila de tradição pesqueira na ilha de São Miguel, no arquipélago português dos Açores. Em julho de 2001, um veleiro naufragou na região e pescadores encontraram meia tonelada de cocaína com nível de pureza de 80%. Até hoje, apenas 400kg da droga foram recuperados, ou seja, 100kg de cocaína tiveram destino desconhecido. O número de internações por overdose disparou e vários moradores desenvolveram uma dependência da droga, alguns até passaram a buscar na heroína uma solução para contrabalancear a euforia geral causada pela cocaína. Ainda hoje, Rabo de Peixe é uma das regiões com maior taxa de dependência química na Europa.
O cineasta açoriano Augusto Fraga se aproveita dessa história como ponto de partida para “Mar Branco” (originalmente chamada “Rabo de Peixe”), segunda série portuguesa da Netflix. A série tem início com um padre colapsando durante uma missa. Uma criança então vai atrás dos “responsáveis” por aquilo, Eduardo (José Condessa), Silvia (Helena Caldeira), Carlinhos (André Leitão) e Rafael (Rodrigo Tomás). Antes que entendamos ao certo o que acontece, o texto nos leva ao início da história. Conhecemos Rabo de Peixe pelo olhar desesperançoso dos quatro jovens.
Eduardo era o melhor aluno da turma, mas largou os estudos para trabalhar e ajudar o pai; Silvia sonha em ser miss, mas é mais provável que passe a vida no balcão da locadora local; Carlinhos é um homem gay que não encontra pares por lá; e Rafael é astro da ilha, uma ex-promessa do futebol português que chegou a jogar no Benfica, mas teve a carreira interrompida por uma grave lesão.
A série deixa muito claro não haver esperança alguma de uma vida melhor e ou espaço para sonhos em Rabo de Peixe – a única chance de ganhar a vida por lá é uma sonhada ida, muitas vezes ilegalmente, para os EUA. Tudo muda quando dois mafiosos italianos naufragam com o barco cheio de cocaína e a droga começa a chegar à vila. “Mar Branco” é ótima em apresentar esse contexto inicial e a vida dos protagonistas para que o espectador fique do lado deles. Quando Eduardo consegue 397kg de cocaína, vê na droga uma oportunidade de mudar de vida. “Por que uns têm tanto e outros tão pouco? O que eles fizeram para merecer isso?”, questiona, buscando legitimar o que sabe ser um erro, mas quem pode julgá-lo?
“Mar Branco” não é necessariamente original, mas usa a improvável ambientação a seu favor. A simplicidade da vila de Rabo de Peixe contrasta com os cenários deslumbrantes das ilhas do Açores. Ajuda muito o fato de os protagonistas serem pessoas com as quais o público consegue se identificar – Eduardo é sonhador e não vê a hora de largar tudo, mas seus amigos se dedicam mesmo é a consumir boa parte da droga encontrada.
Com uma narração em off durante boa parte da série, “Mar Branco” se aproxima do estilo de “Narcos”, com o narrador introduzindo conceitos e personagens de maneira eficiente, sem grande didatismo. Mesmo muitas vezes sendo uma muleta narrativa, a narração funciona para o que a série propõe, a contação de histórias que dá à trama uma pegada de realismo fantástico. O próprio narrador (que se revela perto do fim) diz que “talvez tenha exagerado na história da cocaína” em uma montagem que mostra a droga sendo usada até para empanar peixes.
Em sete episódios de cerca de 45 minutos, a série nunca permanece no mesmo lugar. Quando tudo parece correr bem, há algo para movimentar o texto. É divertido acompanhar o quarteto tentando vender a droga sem ter ideia de como fazê-lo; em determinado ponto, a ilha está tão cheia de cocaína (oferta e procura) que eles percebem a necessidade de serem mais ambiciosos e levar a droga para o continente. A cada passo, porém, há novos percalços: a polícia portuguesa, os italianos que levavam a droga e, o pior de todos, o verdadeiro dono da carga perdida.
“Mar Branco” em diversos momentos lembra “Cidade de Deus” (2001), de Fernando Meirelles, principalmente na maneira como lida com a desesperança, a pobreza e o sonho de ascensão social. A droga e a violência têm papéis essenciais à série, mas nunca é glamourizada – não é coincidência que Eduardo, o mocinho da trama, nunca encoste na cocaína.
É muito interessante como o roteiro, que não é um primor de originalidade, se destaca ao tomar decisões muito ousadas, reforçando, assim, o dito no parágrafo anterior. A partir do momento em que Eduardo, Silvia, Carlinhos e Rafael decidem de fato vender a droga, eles assumem riscos e o texto lembra o espectador disso a todo momento com a sensação de que ninguém está seguro.
Ainda assim, vale ressaltar que há histórias subdesenvolvidas, como a da inspetora vivida por Maria João Bastos. A escolha de deixá-la unidimensional é curiosa porque o texto até chega a ensaiar uma trama para ela, mas, assim como os outros policiais, a personagem acaba servindo apenas como contraponto à ação do quarteto principal.
Ao fim, “Mar Branco” é ótima ao criar a ficção a partir de um acontecimento histórico. Com texto ágil, às vezes engraçado, mas na maior parte do tempo tenso e dramático, a série portuguesa é uma ótima surpresa e uma ótima história que merece atenção.
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