Carlos Marighella (1911 - 1969) foi preso pela primeira vez jovem, em 1932, após escrever um poema com críticas ao interventor Juracy Magalhães, tenente do exército nomeado interventor da Bahia por Getúlio Vargas em 1931. Em liberdade, se filiou ao Partido Comunista anos depois e foi morar no Rio de Janeiro. Foi novamente preso em 36, por “subversão” ao governo Getúlio Vargas; solto um ano depois, partiu para a clandestinidade e deu sequência a seu ativismo político. Foi capturado em 1939, mais uma vez torturado, e permaneceu preso até 1945, quando se deu início ao processo de redemocratização do país e o fim da ditadura da Era Vargas.
Eleito deputado federal, teve seu mandato cassado pouco depois e retornou à clandestinidade atuando no “partidão”. Foi à China, a convite do Partido Comunista do país, e conheceu detalhes da revolução chinesa. Com o golpe militar de 1964, se tornou um alvo e acabou novamente preso pouquíssimo tempo após os militares darem fim à democracia no Brasil. Marighella era o inimigo número um dos militares.
São os últimos anos da vida do revolucionário baiano o período retratado em “Marighella”, de Wagner Moura, filme que finalmente chega às telas de cinema do Brasil após diversos adiamentos por empecilhos impostos pelo atual governo federal que, não por coincidência, admira as pessoas e o regime contra os quais Carlos Marighella lutava.
Após um texto brevemente introduzindo a política brasileira à época, “Marighella”, o filme, tem início em 1968, com um assalto a um trem para roubar armas do exército. “Nós somos a Ação Libertadora Nacional (...) Aqui não tem bandido e não iremos machucar ninguém. Este trem carrega armas que usaremos para combater a ditadura”, grita Branco, personagem de Luiz Carlos Vasconcelos. A cena é um desvio do filme de Wagner Moura do livro de Mário Magalhães, cujo texto é adaptado à tela, mas funciona para dar o ritmo da narrativa. A cena é realizada em um grande plano sequência com a câmera acompanhando Marighella (Seu Jorge) pelo trem durante a tomada de controle pouco antes dos tambores da Nação Zumbi embalarem a ação.
O filme desacelera após essa introdução, voltando aos momentos que antecedem a prisão de Marighella em maio de 64, logo após a instauração da ditadura. No cinema, ele é alvejado e preso por agentes do governo. O roteiro de Felipe Braga e Wagner Moura confere elementos mais dramáticos à narrativa, como, por exemplo, colocar Carlinhos, filho de Carlos, na cena do cinema.
“Marighella” constrói uma imagem heroica de seu biografado e Seu Jorge compõe um guerrilheiro complexo - é o sujeito que acredita na revolução armada para depor o governo militar, principalmente pós-Ato Institucional nº5, mas é também o pai que lamenta a distância do filho. As duas coisas, na verdade, estão conectadas, Carlos Marighella, um homem que passou a vida adulta preso, torturado ou fugindo, luta para que o povo brasileiro, personificado em Carlinhos, não precise passar por isso.
O filme de Wagner Moura cria para o protagonista um nêmesis, o delegado Lúcio (Bruno Gagliasso), a personificação do que poderia haver de mais sádico e brutal nos agentes do governo durante o período de ditadura militar. Lúcio parece ter a queda de revolucionários como a grande meta de sua vida. Inspirado no delegado Sérgio Fleury, ele reúne características de diversos agentes da repressão e também protagoniza histórias reais comandadas por alguns deles - o personagem é fictício, seus atos e métodos não.
“Marighella” traz um recorte histórico focado nos últimos 18 meses de vida do biografado. Dentro da célula revolucionária, o filme insiste na discussão entre a luta armada e a oposição intelectual proposta pelo Partido Comunista. “Quando você fala em luta armada, você fala com uma superioridade moral que eu não admito”, diz Clara (Adriana Esteves), companheira de Carlos, durante uma discussão sobre os métodos da resistência.
Para a narrativa, o recorte funciona e o texto não gasta tempo com construções de pouca importância à mensagem principal. Em contrapartida, o filme requer conhecimento prévio da história brasileira e até mesmo de Marighella. Sem as informações pregressas da vida do protagonista, fica a impressão de que seus atos são tratados apenas de forma heroica, e não como uma última esperança de um sujeito que lutou e apanhou durante toda a vida. É claro que algumas informações são colocadas em diálogos, mas sem a mesma força daquilo que vemos em tela.
“Marighella” é um grande filme político de ação e, por isso, seu foco é na luta armada - a oposição intelectual até aparece, mas se mostra eficaz apenas quando atua como braço do núcleo disposto a partir para a luta. As cenas de ação são espetaculares e cruas, colocando o espectador como parte dela, ao lado dos personagens de Humberto Carrão e Bella Camero. O trabalho de fotografia de Adrian Teijido e a montagem de Lucas Gonzaga recriam a urgência da ação e potencializam a força dos atores. O elenco, vale ressaltar, é um espetáculo - dos protagonistas Seu Jorge e Luiz Carlos Vasconcelos aos coadjuvantes, como Herson Capri, Henrique Vieira e os supracitados Adriana Esteves, Carrão e Camero.
O filme que chega aos cinemas é a história de um mártir e, até por isso, torna seu biografado uma criatura quase mítica. O peso de algumas de suas decisões é aliviado pela dramatização do texto. Carlos Marighella era um dos raros guerrilheiros a se reconhecer como terrorista diante da situação do país - era, sim, vendido como um grande vilão pela ditadura e se reconhecia como tal. Ainda assim, o texto releva alguns objetivos para tornar seu protagonista em uma figura mais simpática ao olhar do público.
Como registro histórico, falta ao filme de Wagner Moura uma contextualização para que não seja cobrado um “tem que mostrar o outro lado da história" - o outro lado foi mostrado em 21 anos de regime militar, mas muitos parecem ter se esquecido disso e o mercado internacional não tem real noção de tudo o que aconteceu. Como filme, no entanto, a obra entrega uma trama rica, com alguns clímax espalhados pela narrativa, ação explosiva e alguns arcos dramáticos emocionantes. “Marighella” tem o mérito de transformar a espetacular narrativa do livro Mário Magalhães em um produto de entretenimento que entende a força explosiva que tem. Ao final, quando Bella Camero olha para a câmera, é fácil entender o que a jovem guerrilheira tem em seu olhar.
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