Às vezes parece que estou preso naqueles filmes como o clássico “O Feitiço do Tempo” (1990), em que o personagem vive o mesmo dia repetidamente. Eu acordo, venho para o meu local de trabalho, ainda em casa, assisto a algum filme ou série, escrevo sobre ele, sobre as fórmulas clássicas usadas pela indústria do entretenimento, publico e sigo pronto para mais um dia da mesma rotina. As obras com essa fórmula, inclusive, sempre foram admiradas por mim.
Há ótimos exemplares recentes como “Palm Springs” (2020), “A Morte te dá Parabéns” (2019), “No Limite do Amanhã” (2014)”, “O Mapa das Pequenas Coisas Perfeitas” (2021) ou a série “Boneca Russa”, lançada pela Netflix. Essa lista agora ganha mais um membro em “Mate ou Morra”, filme de Joe Carnahan que chega nesta quinta (16) aos cinemas brasileiros aproximando a fórmula cinematográfica de uma mídia na qual ela sempre funcionou bem, os vídeo games.
Desde os créditos iniciais, apresentados como um jogo de 8 bits, a influência dos jogos é escancarada e já temos dicas do que teremos narrativamente adiante. Logo somos apresentados a Roy (Frank Grillo), um sujeito que está há cerca de 140 dias acordando e sendo caçado pela cidade por um talentoso e cruel grupo de assassinos. Roy, um ex-soldado de operações especiais, já memorizou o que tem que fazer para superar vários desafios, mas seu dia nunca passa de um ponto inevitável.
Depois somos levados até o momento em que tudo começou e somos apresentados à cientista Jemma Wells (Naomi Watts), ex-esposa de Roy, e a seu chefe, o coronel Ventor (Mel Gibson). Entendemos que há algo misterioso ali e logo descobrimos o que está acontecendo. É interessante como a apresentação dessa informação parece apressada, mas essa sensação logo é descartada quando se entende que ela é essencial para que “Mate ou Morra” funcione como o que é, um grande jogo, sem grande profundidade de personagens secundários, com seus desafios, subchefes e chefes - o nome em inglês, “Boss Level” (“O Chefe de Fase”) entrega essa dica.
Por mais que não tenha uma premissa original, “Mate ou Morra” funciona. Joe Carnahan é ótimo para obras com essa pegada, com ação estilosa e sem muita preocupação em parecer real. Carnahan opta por uma edição de cortes rápidos e uma narrativa acelerada. Apesar de repetirmos o dia de Roy várias vezes, ele nunca é igual - às vezes ganha agilidade, outras vezes é mais explorado, dando mais profundidade ao protagonista, tudo de acordo com a necessidade do texto. Frank Grillo confere tanto a intensidade necessária para o papel quanto a canastrice de quem já vive aquelas situações há vários dias.
“Mate ou Morra” começa realmente a se desenvolver quando Roy descobre como passar daquela fase. Surpreende como o filme funciona como um RPG de ação em determinados pontos, ou seja, não basta entender os movimentos do adversário ou estudá-los, é necessário subir de nível, buscar conhecimento e técnicas. Alguns chefes, inclusive, são dignos de um “soulslike”. Cabe aqui a explicação: o sucesso de “Dark Souls” e afins fez “surgir” um gênero de jogos, os “soulslike”, jogos com alto grau de dificuldade nos quais um chefe pode te matar com apenas um golpe e dos quais muitos desistem ainda no tutorial. Guan Yin (Selina Lo), com certeza seria uma chefona em algum “soulslike”.
“Mate ou Morra” é um filme divertidíssimo e redondinho. Coautor do texto ao lado de Chris Borey e Eddie Borey, Carnahan entende de teoria de cinema tão quando do ciclo e da dinâmica do filme que dirige. Nada é gratuito na narrativa, é como o princípio narrativo da Arma de Chekhov, segundo o qual todos os elementos presentes em uma história devem ser necessários e elementos irrelevantes devem ser removidos. Assim, se há um personagem, mesmo um meio esquecido, acredite: ele terá função narrativa.
O filme funciona também como uma história de redenção para Roy, que se reconecta com a ex-esposa e com o filho que nem sequer sabe que ele é seu pai, mas comete um erro bobo ao apresentar os dias e as tentativas em uma contagem. Assim, o espectador pode questionar a facilidade de Roy aprender algumas coisas bem rapidamente, algo como se tornar capaz de derrotar um mestre em algo após 20 dias de treinamento. A narração em off, explicando tudo o que o protagonista faz e tudo com que se depara também poderia ser descartada. Seria mais interessante, por exemplo, fazer como o já citado “Palm Springs” ou o impecável episódio “Heaven is Sent”, de “Doctor Who”, deixando a quantidade de loopings em aberto. Quantos dias, afinal, seriam necessários para que você se reinventasse?
De qualquer forma, “Mate ou Morra” se destaca pelo caos e pela diversão que proporciona. O filme adota uma pegada mais ficção científica no terceiro ato e finge explicar o que está acontecendo sem efetivamente explicar coisa alguma. Nada importa, na verdade, além da repetição, da tentativa e do erro.
Ao fim, “Mate ou Morra” vale por Frank Grillo e Joe Carnahan. O primeiro entrega um protagonista visceral, um personagem raso, mas com quem acabamos nos importando como o protagonista de um jogo, o sujeito que não podemos deixar morrer, como se fosse a nossa escolha errada que o tivesse colocado ali. Carnahan, por sua vez, entende a linguagem do produto que tem em mãos, com cenas ágeis, mas nunca confusas, e que fazem o espectador entender claramente a dinâmica do filme. Como em um bom jogo, a experiência do usuário é o que importa.
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