No início de 2020, pré-pandemia e bem antes de sua estreia na Netflix, no último dia 9, “Mignonnes” (ou “Cuties”) fez sucesso no festival de Sundance, onde foi adquirido pela gigante do streaming. Com um bom número de críticas positivas, o filme francês foi premiado com o prêmio de Direção Dramática Mundial e parecia destinado a uma boa repercussão quando chegasse às telas mundo afora. As coisas, no entanto, não caminharam muito bem.
Acontece que a Netflix cometeu uma atrocidade no material de divulgação do filme de Mïmouna Doucouré - o cartaz, bem diferente do original, trazia pré-adolescentes em poses e trajes sensuais e, para completar, a sinopse falava sobre uma senegalesa de 11 anos explorando sua “feminilidade” em uma jornada de autoconhecimento contra as tradições de sua família. Imediatamente surgiram petições on-line para a retirada do filme do catálogo e uma chuva de críticas negativas em sites colaborativos como o IMDB, no qual tem nota atual de 2,2; o filme não havia sequer estreado.
A Netflix se desculpou, alterou o cartaz, a sinopse e até manteve o título original do filme, que passou a constar como "Mignonnes" ao invés de "Cuties" no catálogo, mas o estrago já estava feito. Não adiantou as explicações da diretora em diversas entrevistas ou o posicionamento de outras pessoas na indústria - o filme agora é utilizado como “prova” de que a Netflix e Hollywood querem acabar com os bons costumes.
Mas e o filme? Bem, “Mignonnes” passa longe de ser uma jornada de descoberta sexual, pelo contrário, o filme tenta criticar uma sexualização precoce de meninas como Amy (Fathia Youssouf), a jovem de origem senegalesa que encontra um novo mundo em Paris quando se aproxima de outras pré-adolescentes que formam o grupo de dança que dá nome ao longa.
O roteiro, também escrito por Doucouré, ambiciona ser uma jornada de libertação em meio aos conflitos religiosos e culturais de uma pré-adolescente. Criada nas tradições religiosas de sua família, Amy aprende desde pequena que a mulher é um cidadão de segunda classe e que deve se contentar à subserviência - o exemplo está em casa, com a mãe sofrendo às vésperas do segundo casamento do ausente marido, pai de Amy, algo permitido pela religião. Neste cenário, seu encontro com as “Mignonnes” é libertador.
As meninas são populares na escola, descoladas e fingem uma maturidade para a qual obviamente não estão preparadas. Apesar do desprezo inicial que têm por Amy, a relação de proximidade da protagonista com Angelica (Médina El Aidi-Azouni), sua vizinha e líder do grupo, a aproxima das outras. Juntas elas vão tentar mostrar que são as melhores no que fazem e vencer um disputado concurso de dança.
A trama, como pode-se perceber, não romantiza pedofilia ou erotiza as jovens. É curioso como a diretora faz questão de ressaltar que as meninas se comportam da maneira que acreditam ser o esperado pela sociedade e emulam comportamentos que geram cliques e popularidade. Mïmouna Doucouré causa repulsa no espectador com seus enquadramentos e na maneira como filma os números de dança, reforçando ao público que aquilo é inadequado; em um dos números, inclusive, há reação contrária explícita de outros personagens.
Mesmo que cause esse desconforto, o filme poderia reforçar mais as consequências dos atos das protagonistas - as escolhas de Amy, por mais sérias e equivocadas que possam ser, nunca resultam em nada além de uma resposta rápida na cena seguinte. O roteiro também poderia ser melhor trabalhado para evitar justamente a interpretação equivocada. A mensagem do filme é clara o suficiente, principalmente na cena final, mas seu desenvolvimento abre brechas para que o filme seja utilizado com outras mensagens.
Ao fim, “Mignonnes” é um filme que ficará marcado pelo equívoco em seu material de divulgação. O longa de estreia de Mïmouna Doucouré gera desconforto no público e atinge seu objetivo de fazê-lo questionar comportamentos não muito diferentes daquilo que nos acostumamos a ver há pouco tempo nas tardes de domingo na televisão.
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