Em determinado ponto de “Mo”, dois homens de ascendência árabe e um nigeriano estão em um carro com drogas parado pela polícia. Os dois árabes ficam nervosos, mas o homem negro diz para que eles mantenham a calma. “Esqueceu que você é negro? Nós dois podemos até morrer, mas você com certeza vai morrer”, diz um dos árabes. Obviamente não é uma situação engraçada, mas a construção do texto e os atores da nova série da Netflix tornam impossível segurar a risada. “Mo” é cheia de momentos assim.
Criada por Mo Amer e Ramy Youssef (da ótima “Ramy”), a série da Netflix é uma versão ficcionalizada da vida de Amer. Em oito episódios curtos e ágeis, a primeira temporada acompanha Mo e sua família de refugiados palestinos - todos fugiram do Iraque durante a Guerra do Golfo, no início dos anos 1990 - em busca de um visto de refugiado que os possibilite viver como cidadãos americanos, um processo que já dura mais de 20 anos.
Apesar de manter suas raízes palestinas, Mo é um americano, tendo vivido quase toda vida nos EUA, que não pode exercer sua cidadania. A “americanidade” dele é reforçada pelos figurinos, sempre com camisas e bonés de times esportivos de Houston, onde a série se passa, e com roupas e comportamentos que remetem à cultura do hip hop.
Mo é um sujeito preso entre dois mundos que parecem não querê-lo como ele é; sua mãe, Yusra (Farah Bsieso), não aceita seu namoro com Maria (Teresa Ruiz), uma filha de imigrantes mexicanos bem-sucedida em seu próprio negócio, e ainda acha que encontrará uma noiva muçulmana para o filho. Já Sameer (Omar Elba), irmão mais velho do protagonista, é um sujeito claramente no espectro autista que trabalha, de forma ilegal, em uma loja de frango no cone.
Além das semelhanças com a já citada “Ramy” (não disponível no Brasil), “Mo” tem forte influência de “Atlanta” (atualmente no Star+) no modo como conduz a narrativa e principalmente na construção dos personagens secundários - até os que aparecem em poucos momentos acrescentam à história, como o plural grupo que joga cartas ou amiga a quem Maria recorre em determinado arco. “Mo” é uma série sobre conexões e ironicamente tem um protagonista que se dá bem com todo mundo, mas é incapaz de se abrir quando precisa, mesmo que tenha um suporte para isso.
Comediante stand-up de sucesso, Mo Amer mostra pleno domínio sobre o próprio texto e controla o espectador com maestria, manipulando as expectativas e abraçando o inusitado. É interessante como as viradas do texto não são necessariamente originais, mas a maneira como Mo lida com os conflitos é quase sempre inesperada.
“Mo” funciona pelo excelente texto, mas também muito em função do carisma de seu protagonista, o que é essencial para uma série que leva o nome do ator/personagem. Mo, o personagem, não tem vida fácil, mas é adorável com todos, um filho e irmão atencioso, um funcionário exemplar, um amigo fiel e um bom namorado. Esse carisma impossibilita o espectador não se identificar de alguma forma com Mo e torcer por ele até nos momentos em que ele não está certo.
A série é falada em três idiomas (inglês, árabe e espanhol) se alternando a todo momento até no mesmo diálogo, o que rende ótimas piadas nem sempre possíveis de serem adaptadas para o português e reforça o aspecto multi-cultural das periferias das grandes cidades estadunidenses. “Mo” aborda temas pesados e não foge de nenhum deles, mas tenta sempre a saída bem-humorada.
Isso não significa, porém, que a série fuja de conflitos ou de emoções, ela apenas não leva o melodrama tão a sério. “Mo” é surpreendentemente pesada se analisada além do humor ou até mesmo pela maneira como ela cria a risada - é o tipo de comédia cuja risada causa culpa e até um certo constrangimento não por ser “politicamente incorreta”, mas por fazer graça com as dores de seus criadores.
A inteligência do texto não está só no humor, mas também na construção de subtramas que funcionam e já podem servir de base para próximas temporadas. A série traz arco individual para Yusra, Maria, Sameer e até um pouco de profundidade para Nick (Tobe Nwigwe), o nigeriano citado no parágrafo que abre o texto. É uma pena, assim, não existir tempo de tela o suficiente para desenvolver tudo com a mesma ambição, mas os caminhos ensaiados para a mãe e o irmão do protagonista são ótimos e renderiam até uma série independente.
O maior problema de “Mo” é ser curta demais. Sem grande esforço, a série cria um universo rico, cheio de cultura e com personagens interessantes que mereciam mais tempo de tela e um ótimo protagonista. A série oferece um breve mergulho no mundo de refugiados nos EUA e os trata como uma grande comunidade. Mo Amer é ótimo no humor, como já era de se esperar, mas se sai muito bem também ao demonstrar afeto e nos arcos dramáticos. Uma ótima surpresa.
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