Os EUA têm a maior população carcerária do mundo, com mais de dois milhões de presos - dois em cada três são negros. Há muita informação nesses dados, a começar pelo fato de que brancos e pretos não terem condições iguais de julgamento e serem julgados de forma diferentes por crimes semelhantes.
Há também, claro, um recorte social que empurra a população negra americana para piores condições sociais e, consequentemente, para o crime. Basta ver o documentário “Time”, indicado ao Oscar deste ano e disponível no Amazon Prime Vídeo, para entender um pouco como funciona o desespero, ou “A 13ª Emenda”, de Ava DuVernay, na Netflix, para se aprofundar em como as leis americanas foram construídas justamente para o encarceramento do homem preto.
“Monstro”, lançado pela Netflix na última semana, se arrisca por esses temas, mas não se aprofunda. Baseado no livro homônimo de Walter Dean Myers, o filme dirigido por Anthony Mandler acompanha Steve Harmon (Kelvin Harrison Jr), um jovem fotógrafo com aspirações de se tornar cineasta que é preso por participação em um roubo seguido de homicídio e agora pode passar o resto da vida em cárcere.
A narrativa de “Monstro” é interessante. O filme tem início com Steve praticamente narrando o que vemos em tela, como se na construção de um roteiro. Causa certo estranhamento, mas é uma construção interessante. Essa característica, porém, é abandonada enquanto vamos conhecendo o protagonista. Filho de uma família com boas condições, Steve é um adolescente comum, bom filho, um aluno dedicado e com grandes aspirações, o que o texto deixa claro na construção do personagem.
O roteiro faz um bom papel ao intercalar momentos do julgamento de Steve e dos outros acusados com os que antecedem o crime. Mandler, diretor com longo currículo de clipes de artistas como Taylor Swift, Rihanna, Muse, The Weeknd, entre vários outros, constrói algumas sequências com essa estética de vídeo clipe. Como Steve carrega sempre uma câmera para registrar momentos do dia, o diretor usa as imagens dessa câmera para conferir ao filme um aspecto quase poético em certos momentos.
Nesse aspecto, “Monstro” é eficaz. A construção do núcleo familiar de Steve e todo o mistério que cerca sua participação ou não no crime seguram o filme. Como drama jurídico, no entanto, falta força ao roteiro, que carece de um ponto de virada.
Como trama de tribunal, o filme de Mandler passa todo o tempo desconstruindo a imagem criada pelo promotor de justiça no início do julgamento. “Monstro” é o adjetivo utilizado por ele para definir Steve e os outros acusados - para o jovem negro não existe o “inocente até que se prove o contrário”; ou se prova a inocência, ou a culpa está intrínseca.
O roteiro foge da fácil dramatização da prisão e dos horrores do sistema prisional americano que até já se tornaram comuns em filmes do gênero. Ao invés disso, a jornada de Steve é pessoal, com o texto traçando paralelos entre sua vida encarcerado e o que o levou até ali.
Mandler praticamente coloca o espectador no papel do juri, o que funciona muito bem. As informações nos são passadas sem pressa para nos fazer desconstruir ou não a imagem do tal monstro. Quando em um momento Steve afirma que o tribunal é “preto ou branco, sem espaço para o cinza”, ele nos faz pensar no quanto existe entre duas posições - as coisas não são tão simples quanto as leis fazem acreditar.
Curiosamente, é em não nos deixar imaginar tudo o que há nessa área “cinza” que “Monstro” tem sua grande falha. Ao trabalhar na construção da história de Steve, e talvez para usar uma estrutura mais convencional, o filme às vezes mostra mais do que deveria e acaba comprometendo a narrativa até ali.
“Monstro” se sustenta muito na atuação de Kelvin Harrison Jr. e na de Jeffrey Wright, que vive o pai do jovem. Algumas outras, como Jennifer Hudson e Tim Blake Nelson, não convencem - Nelson, que vive um professor de Steve, é um recurso muito ruim usado pelo texto.
Ao fim, “Monstro” é um filme com bons momentos e com uma atuação espetacular de seu protagonista. É um drama de tribunal mais reflexivo e quase poético, mas que derrapa justamente quando tenta se convencional. O resultado, de qualquer forma, é forte e faz com que o espectador pense bastante sobre o que acabou de ver em tela.
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