Quando lançou “Borat”, em 2006, Sacha Baron Cohen expunha um Estados Unidos que vinha perdendo a vergonha de assumir sua intolerância. A ideia de Baron Cohen surgiu quando percebeu que o público americano achava graça dos comentários machistas e homofóbicos de seu programa de TV, o “Da Ali G Show”. Ele quis, então, expor quem era esse EUA que em pleno 2006 ria de preconceitos e de antissemitismo.
“Borat” foi um sucesso e o personagem passou a fazer parte do alto escalão da cultura pop, com fantasias que imitavam algumas de suas roupas e diversos bordões na boca do povo. Como, então, Sacha poderia voltar aos EUA em pleno 2020 sem ser reconhecido?
Em “Borat: Fita de Cinema Seguinte”, que chamarei apenas de “Borat 2”, o ator abusa de disfarces, mas quem por vários momentos comanda o show é a filha do ex-segundo melhor repórter do Cazaquistão, Tutar (Maria Bakalova). O filme lançado nesta sexta (23) no Amazon Prime Video segue a mesma estrutura de seu antecessor - Borat agora tem a missão de entregar sua filha como um presente para o vice-presidente Michael Pence, uma homenagem do Cazaquistão aos bons serviços prestados pelo governo Trump, mas precisa torná-la “apresentável” para isso.
É interessante notar que, quase 15 anos depois, os preconceitos antes escondidos vieram à superfície e se tornaram mainstream nos EUA, tudo personificado em Donald Trump, praticamente um Borat “ianque”. É claro que a montagem de “Borat” conta a história que Baron Cohen e o diretor Jason Woliner escolhem contar, mas surpreende a naturalidade com que as pessoas que participam do filme falam sobre matar imigrantes, entregar uma jovem de 15 anos a um adulto ou sobre como os democratas são mais perigosos do que o coronavírus - eles, afinal, “criaram o vírus”.
Como tudo no universo de “Borat”, é difícil separar o que é improviso semi-documental e o que é uma grande mise-en-scène? Há algumas sequências mais óbvias, que funcionam para colocar o roteiro em movimento, como o encontro do protagonista com uma sobrevivente do Holocausto ou quando Tutar é deixada com uma babá, mas em diversos outros momentos a distinção é complicada.
“Borat 2” é muito melhor quando se faz imprevisível e desperta aquele sentimento de vergonha alheia no espectador, e é por isso que tem seus melhores momentos quando assume a postura de documentário falso mais mergulhado em explorar conceitos sociais como coachs, sugar daddies e influencers do que em contar uma história.
A situação sócio-política do mundo torna “Borat 2” superior a seu antecessor - o filme de 2006 divertia com escatologias e com os absurdos e a história de encontrar a atriz Pamela Anderson, já o novo, gravado este ano, ou seja, durante a pandemia, é mais urgente e oferece um humor diferente, quase nervoso. O que antes era absurdo para muitos, hoje se tornou normal e até comanda países - o presidente do Brasil é citado de maneira "elogiosa" logo no início.
O terceiro ato do filme, que culmina na já tão falada cena do ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani, advogado de Donald Trump, é a síntese do filme. Ela não é engraçada, pelo contrário, é bem triste. É como se todo “Borat 2” tivesse sido feito para chegar àquele momento, como se cada comentário absurdo fosse um tijolo na construção daquela cena.
Porque é isso que Borat e Tutar fazem em cena: eles alimentam os preconceitos para que as pessoas se sintam confortáveis para destilar racismo, antissemitismo e machismo, algo bem parecido com o que as redes sociais fizeram. O filme é um retrato da ascensão da extrema-direita teocrática e intolerante, o que fica assustadoramente claro na sequência em que Borat canta no parque e até saudações nazistas orgulhosas dividem a tela com americanos anti-vacina, apoiadores de Trump que cantam sobre injetar o “vírus de Wuhan” em opositores. A canção é praticamente um hino negacionista pró-notícias falsas: "Hillary Clinton se alimenta do sangue de crianças", afirma uma pessoa em tela, antes de completar "é o que dizem".
“Borat: Fita de Cinema Seguinte” é um retrato de sua época da mesma forma que foi a primeira aventura do segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão - assistir aos dois filmes em sequência é uma experiência que mostras as mudanças comportamentais ocorridas nesses quase 15 anos, e elas são assustadoras.
Há, sim, uma construção narrativa, trata-se, afinal de um documentário falso, mas o novo “Borat” extrapola de seu papel inicial. Com Maria Bakalova brilhando ao lado de Sacha Baron Cohen, “Borat 2” vai além de expor os preconceitos do americano “médio”; o filme funciona quase como um estudo de caso que entrega respostas do estilo causa/consequência quando Tutar se vê frente a frente com Rudy Giuliani. A risada fica de lado, dando espaço ao constrangimento e à revolta,
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