Último livro do autor inglês D. H. Lawrence, “O Amante de Lady Chatterley” foi publicado originalmente na Itália, em 1928, e pouco depois na França, mas acabou proibido mundo afora (Japão, EUA, Austrália, Canadá, etc.). No Reino Unido, terra natal do escritor, uma versão censurada da obra só foi publicada em 1959, quando a editora Penguin Books acabou processada pela coroa britânica pelo forte conteúdo erótico e pelas obscenidades da obra. A editora venceu e o caso é ainda hoje considerado o início de transformações sociais na região, um marco de um Reino Unido mais permissivo e menos conservador.
A personagem Lady Chatterley se tornou um ícone na cultura britânica e objeto de diversas obras, de filmes e séries a peças de sucesso (o filme de 2006, de Pascale Ferran, é muito bom). Dirigido por Laure de Clermont-Tonnerre (de episódios de “American Crime Story” e “The Act”), “O Amante de Lady Chatterley” chega agora à Netflix em uma adaptação provocadora e elegante.
O filme tem início às vésperas do casamento da jovem Connie (Emma Corrin, ótima) com o nobre Clifford Chatterley (Matthew Duckett). Ele está prestes a ir para a guerra e faz sentido que eles se casem e possam consumar seu amor antes disso. Quando Clifford retorna do conflito em uma cadeira de rodas, tudo muda. Connie se tornou a Lady Chatterley, senhora da propriedade, e anseia por uma ativa vida sexual agora que está casada. Cliff, no entanto, sem os movimentos das pernas e aparentemente incapaz de manter uma relação sexual, tem pouco interesse em saciar os desejos da esposa.
A diretora é ótima ao construir o desejo sexual de Connie desde o primeiro diálogo que ela tem com a irmã; o filme também acerta ao trazer Clifford, mesmo antes da guerra, como uma pessoa pouco sexual. O contraste funciona para reforçar o afastamento entre o casal e também para que, no segundo ato, entendamos melhor as escolhas de Clifford - se ele já não curtia tanto sexo antes, depois da guerra, num mix de vergonha e desinteresse, elimina o ato de sua vida quase que com certa gratidão.
O problema é que ele deseja um herdeiro e, por isso, incentiva a esposa a ter relações discretas e sem compromisso, das quais ele não precisa saber. A ideia é que Connie se aventure em alguma viagem, mas ela acaba mesmo é se envolvendo com Oliver Mellors (Jack O’Connell), um funcionário da propriedade abandonado pela esposa, que foi morar com outro homem.
Mellors é rude, mas afetuoso, um sujeito de pegada a quem a protagonista se entrega sem muita hesitação. O filme constrói bem a relação entre os dois, do flerte inicial à relação sexual, passando pelo desenvolvimento do interesse mútuo até chegar, de fato, na cumplicidade e no amor puro, sem interesses.
É fácil entender o apelo sexy da história, mas a diretora cria uma protagonista com a qual é fácil se identificar, uma mulher redescobrindo o mundo e tendo empatia pela vida das pessoas que a cercam - Connie não nasceu na nobreza, tendo se tornado nobre pelo casamento. Suas idas ao vilarejo, por exemplo, a fazem enxergar movimentos sociais dos trabalhadores das minas. Da mesma forma, seu relacionamento com Oliver a reconecta com algo que a faz sentir cada vez mais repulsa de seu marido.
“O Amante de Lady Chatterley” é um filme muito sensual, mas as sequências de sexo nunca são gratuitas - elas cumprem a função de estabelecer e desenvolver a relação entre os protagonistas. Assim, enquanto a primeira delas é claramente impulsiva e carnal, as outras ganham intimidade e afeto. Com a relação já estabelecida, Connie e Oliver correm riscos quase como se secretamente desejassem ser descobertos para, que pudessem, enfim, viver livres um para o outro.
Em sua obra, D. H. Lawrence entendia o sexo como um antídoto à opressão, um manifesto pela liberdade. Clermont-Tonnerre atualiza a visão do autor para quase um século depois, mas também usa o sexo como contraponto para uma indústria cada vez mais conservadora. Não há sexo, desejo ou tesão em filmes que dominam as bilheterias; apesar de corpos lindos e sarados, os super-heróis, por exemplo, são seres praticamente assexuados.
“O Amante de Lady Chatterley” usa o sexo como poesia de libertação até em sua conclusão, que não o vilaniza como diversas obras do gênero, pelo contrário, é somente a partir dele que os personagens encontram a felicidade. Enquanto Connie e Oliver se libertam, em meio à natureza, em ambientes ensolarados e claros, Clifford se mantém um refém de sua falta de desejo, dentro de uma casa fechada e escura.
Essa dicotomia é construída com certa facilidade pelo diretor de fotografia Benoît Delhomme (“A Teoria de Tudo”), que faz ótimo uso das paisagens campestres e da luz natural entre frestas e janelas para reforçar a “vida” na relação dos protagonistas em contraposição ao que os cerca. A música de Isabella Summers (“Little Fires Everywhere”) ajuda a dar ao filme um tom de suspense crescente, principalmente quando Connie está em casa, e traz temas mais “solares” quando surge o amor.
Uma das obras mais importantes da literatura britânica, “O Amante de Lady Chatterley” ganha um filme à altura de sua relevância. Embalada pela atuação magistral de Emma Corrin, Laure de Clermont-Tonnerre entrega uma narrativa sexy e ousada, mas sempre com rara elegância e sutileza.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.