Nos longínquos anos 1990, uma banda capixaba chamava atenção mais pelo visual do que pela música - o Cannibal Clown fazia uma mistura de metal com funk e chegou a ter um reconhecimento legal no circuito independente local. Para fazer jus ao nome da banda, todos os integrantes usavam máscaras de assustadores palhaços, e as máscaras eram incrivelmente bem confeccionadas e assustadoras. Na época, diziam que era um “maluco lá de Guarapari” que as fazia.
Muitos anos depois, em 2008, a colega Ana Laura Nahas escreveu para a saudosa revista “Bravo” um texto que antecipava a estreia do primeiro longa do tal “maluco de Guarapari”, que agora ganhava um nome: Rodrigo Aragão. Naquele mesmo ano, durante a cobertura do então Vitória Cine Vídeo, presenciei uma sessão lotada do filme em questão, “Mangue Negro”, no Cine Jardins. A caminhada de Rodrigo para se tornar um dos maiores nomes do terror brasileiro já havia começado.
Agora, passados 12 anos que viram o lançamento de outros quatro filmes (incluindo a antologia “Fábulas Negras”, ao lado do mestre José Mojica Marins), Rodrigo chega ao filme que deve colocá-lo em outro patamar. “O Cemitério das Almas Perdidas” é um sonho antigo, seu grande épico de terror e uma história que ele vinha guardando há quase 20 anos, até o momento em que finalmente tivesse recursos para filmá-la.
Com orçamento de R$ 2,1 milhões, o filme traz um grande salto de qualidade técnica no trabalho cineasta capixaba. Claro que isso não significa que ele tenha deixado de lado suas criaturas fantásticas e seus monstros, apenas que consegue fazer isso com “mais dignidade” para todos os envolvidos, como ele mesmo definiu.
“O Cemitério das Almas Perdidas” é um filme que se conecta ao universo criado por Rodrigo desde “Mangue Negro” (2008) - tudo gira em torno do lendário “Livro de Cipriano”, obra cercadas de lendas e cheia de conjurações, feitiços e magias. O livro está presente em todos os filmes do diretor e normalmente é responsável pelo surgimento das criaturas imaginadas pela mente de Rodrigo; o novo filme reimagina como esse livro veio parar no Brasil e como ele se misturou a cultura dos povos nativos.
Em uma história clássica de bem contra o mal, o cineasta traz elementos de terror e fantasia que se misturam com a História do Espírito Santo, como a chegada dos Jesuítas e o massacre dos índios, mas nunca com a intenção de transformar sua obra em um registro histórico, longe disso, Rodrigo busca apenas ampliar seus horizontes criativos e suas possibilidades, além de oferecer ao espectador capixaba algo com que se identificar.
“O Cemitério das Almas Perdidas” é o filme mais curto da carreira de Rodrigo Aragão, com pouco mais de 90 minutos, e também o mais conciso. Tal qual Quentin Tarantino em “Era Uma Vez… em Hollywood” (2019), o cineasta capixaba guarda para o clímax do filme o que os fãs esperam de seu cinema. Isso não significa que o resto do filme seja morno, pelo contrário, há lutas de espadas, zumbis e elementos que remetem ao terror italiano dos anos 1960 e 70 e a filmes de diretores como Dario Argento (“Suspiria”) e Mario Bava (“A Maldição do Demônio”), com muita fantasia e folclore, sempre explorando o ambiente e aproveitando para brincar com os sentidos dos espectadores.
Além da já citada “dignidade” aos envolvidos, um maior orçamento resulta também em qualidade. A possibilidade de gravar em estúdio a maior parte do filme possibilita uma iluminação mais bem trabalhada e uma pós-produção mais completa. O áudio, por exemplo, tão criticado em produções nacionais, é ótimo.
É interessante perceber como “Cemitério das Almas Perdidas” traz um Rodrigo mais preocupado em contar uma história do que em repetir o que já deu certo em seus outros filmes. A narrativa se divide em períodos temporais diferentes - uma delas acompanha a chegada de jesuítas ao Brasil e a outra um grupo de teatro de terror que para em uma pequena cidade com seu espetáculo. As histórias se cruzam com naturalidade e ritmo interessante.
Rodrigo entende a magia do cinema e as possibilidades que ela traz. Seus filmes, por mais que muitos tenham nomes similares, são distintos, com narrativas diferentes, indo do “terrir” de “Mangue Negro”, cheio de influências de Sam Raimi e “Evil Dead”, ao terror folclórico de “O Cemitério das Almas Perdidas”, passando pela jornada do herói de “Mata Negra” (2018) e pela mensagem ecológica de “Mar Negro” (2016). A assinatura do diretor está sempre lá: efeitos práticos, maquiagem e monstros fantásticos, mas seu cinema tem um elemento principal, a diversão.
Na cabeça de Rodrigo Aragão, o ideal é que o público se divirta vendo os filmes tanto quanto ele se divertiu imaginando e filmando tudo aquilo, em “O Cemitério das Almas Perdidas” é exatamente isso o que acontece.
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