Quantas vezes você já não ouviu o famoso “no livro é bem melhor” ou o infame “mas nos quadrinhos não é assim” para analisar filmes e séries baseadas em livros ou histórias em quadrinho? Eu mesmo provavelmente já utilizei ambas algumas vezes, senão neste espaço, nos quadros na rádio, internet ou TV. O questionamento que quero fazer é: essas afirmações são justas? Para início, vale ressaltar que este texto não vai te apresentar respostas ou “ditar regras” sobre o que é ou não melhor; a ideia é levantar a dúvida e levar a vocês questionamentos que me acompanham.
Para ter uma base de sustentação para este texto, criei uma enquete no meu Twitter perguntando: “em filmes e séries adaptadas, você acha que o original (livros e quadrinhos) geralmente é melhor?” Apenas 10% dos participantes disseram que não, enquanto cerca de 66% disseram que sim e outros 24% responderam “às vezes”.
É óbvio que há muito material original melhor do que suas adaptações audiovisuais, mas o contrário também não é incomum. Meu ponto é: será que não gostamos mais do original por ter contato com ele primeiro? Quantas vezes você assistiu a um filme após ter lido o livro que ele adapta e considerou o filme melhor? A pergunta inversa também funciona, quantos livros você leu após ter assistido ao filme e considerou o livro superior?
O primeiro contato é importante, é ele que cria a magia, que desperta o interesse e que apresenta um novo universo. Assim, é pouco provável que alguém que tenha lido “O Senhor dos Anéis” ou a saga “Harry Potter” considere os filmes superiores. Vários fãs da obra de J. R. R. Tolkien sentem falta de personagens e acontecimentos que não foram levados para as telas por Peter Jackson. Quando assisti ao primeiro filme, lá em 2001, havia acabado de ler os livros. Senti falta, por exemplo, de ver Tom Bombadil saltando e cantando em cena, mas será que funcionaria, acrescentaria algo à já extensa trama? O mesmo vale para a Lady Stoneheart das “Cronicas de Gelo e Fogo” de George R. R. Martin, livros que deram origem à série “Game of Thrones” - personagem importante nos livros, foi deixada de fora da série da HBO.
Um dos grandes méritos tanto de “A Sociedade do Anel” quanto de “Game of Thrones” é a urgência das histórias que os filmes e a série trazem. Nos livros de Tolkien, como me lembraram na enquete do Twitter, após a conversa com Gandalf, Frodo demora quase 13 anos para partir rumo à destruição do anel, enquanto, nos cinemas, era necessário agir naquele momento, o risco era iminente e o espectador precisava sentir aquilo. Nem todo mundo está interessado em acompanhar detalhe por detalhe de estradas e jardins. Tolkien e Martin são super detalhistas, mas isso resultaria em um produto audiovisual chato.
Lançada pelo serviço de streaming AppleTV+, “Em Defesa de Jacob” transforma em minissérie o livro de William Landay. A série é uma excelente história, um drama familiar com roupagem de thriller jurídico, mas os fãs do livro reclamaram do final modificado. O final da adaptação é ótimo e até superior ao do material original, que traz uma conclusão mais resolutiva e menos “aberta”. Será que as pessoas não preferem o final original por ter criado com ele um apego?
Outro popular exemplo de filme superior ao livro é “O Clube da Luta”, adaptação de David Fincher para o livro de Chuck Palanhiuk. Por mais habilidoso que o autor seja ao criar narrativas pessimistas e violentas, foi só com a linguagem cinematográfica que aquele niilismo de Nietzche ganhou proporções mais caóticas e atrativas.
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"O primeiro contato é importante, é ele que cria a magia, que desperta o interesse e que apresenta um novo universo"
Algo similar acontece com “Scott Pilgrim Contra o Mundo”, de Edgar Wright, que leva para as telas a obra de Bryan Lee O´Malley com uma estética e dinâmica de videogame que os quadrinhos não conseguiam abraçar em sua totalidade.
No mundo dos quadrinhos, só quem acompanhou por décadas as sagas mensais de Marvel e DC se lembra da bagunça que as histórias eram - ninguém morre, realidades paralelas, viagens no tempo, futuros alternativos… O que a Marvel Studios fez ao levar as histórias para o cinema criando um cânone novo foi uma mágica arriscada, mas compensatória, pois, para uma nova geração, o que vale para aqueles personagens é o que eles viram nos cinemas. Cada mídia tem sua linguagem e a Marvel entendeu isso enquanto a DC ainda luta para se encontrar.
Há recursos narrativos e estilos que funcionam nas páginas, mas nem tanto em tela. A obra de Mark Millar, por exemplo, é muito melhor nos cinemas. “Kick-Ass” e “O Procurado” têm escolhas duvidosas no material original e esse conteúdo acabou “filtrado” pelos produtores dos filmes, que têm que entender o público a que se destina o produto. Sabe “Deadpool”, personagem da Marvel que fez sucesso em dois filmes lançados pela Fox? Seus quadrinhos são péssimos, exceção feita a um ou outro arco, como o bom “Cable & Deadpool”.
Sucesso na Netflix, “The Last Kingdom” adapta as “Crônicas Saxônicas” de Bernard Cornwell para o formato série. Um amigo, fã dos livros, considera a adaptação muito “limpa”, com atores galãs, e talvez faça sentido - nos escritos de Cornwell os personagens são sujos e as lutas, violentas. Fica a dúvida, porém, se isso funcionaria bem em tela, para um grande público.
Como disse, não há respostas, apenas mais dúvidas. É um exercício interessante de se fazer: imaginar histórias em outras mídias, com outras estruturas narrativas. Podemos até levar para outro campo como a música, como lembrado pelo meu amigo Cainã; “Como Nossos Pais” eternizada na voz de Elis Regina, é superior à original, escrita e gravada por Belchior, ou é apenas mais popular? O ditado de que “a primeira impressão é a que fica” é real e, apegados a isso e à nostalgia, talvez deixemos de ao menos tentar entender algumas coisas.
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