Nas cenas iniciais de “O Milagre”, de Sebastián Lelio(“Desobediência”, “Uma Mulher Fantástica”), uma voz convida o espectador a acreditar. Em um estúdio dentro de um galpão, a voz nos introduz ao cenário e aos personagens que acompanharemos nas próximas duas horas. Adaptando o livro homônimo de Emma Donoghue (“O Quarto de Jack”), o filme se passa na Irlanda, no período pós-Grande Fome (1845-1849), quando o país ainda se recuperava das mortes e via com restrições a presença de estrangeiros.
É neste cenário que a enfermeira Elizabeth “Lib” Wright (Florence Pugh) é contratada por um vilarejo para investigar o caso de Anna (Kila Lord Cassidy), uma adolescente que há quatro meses não come, mas não apresenta sinais de fraqueza e nenhum problema de saúde. Os líderes da comunidade tratam o caso como um milagre, uma mensagem de Deus, uma pessoa devota que, após um período de fome, se alimenta de orações.
Tendo servido como enfermeira na guerra da Crimeia (1853 - 1856), Elizabeth viu a realidade, a morte e a dor de perto, o que parece tê-la afastado de crenças em fantasias, mas “O Milagre” é um filme sobre acreditar no impossível. Seria Anna, então, um verdadeiro milagre?
O filme de Lelio se situa todo entre a religião e a ciência. Anna é observada em turnos de oito horas nos quais Elizabeth e uma freira se revezam para ter a certeza de que a jovem não está se alimentando. Os moradores da vila, por mais que tenham contratado as observadoras, querem acreditar no milagre, no sinal de Deus e, principalmente, no fato de terem sido escolhidos para isso - eles irão lutar contra os fatos e a ciência para manterem isso.
“O Milagre” se desenvolve como um bom suspense protagonizado por uma alma torturada. Lib tem traumas e esconde segredos que fariam dela uma pária na conservadora sociedade irlandesa da época. O roteiro nunca deixa isso explícito, mas a enfermeira “precisa” que Anna seja uma farsa, pois, se realmente existe um deus, por que ele teria permitido que ela sofresse tanto?
Sebastián Lelio constrói bem o vínculo entre Lib e Anna, desenvolvendo bem a enfermeira e reforçando a fé da jovem como algo quase fantasioso. Dessa forma, na chegada do terceiro ato, quando o texto nos apresenta a virada do filme, o impacto é enorme e deixa o espectador, acreditando ou não, sem chão.
“O Milagre”, além de um filme sobre crenças, se mostra uma história sobre tudo o que é sacrificado para sustentar a fé. É interessante como o texto lida com o sacrifício, às vezes, da própria fé em nome de um sentimento de alcance maior, que afete outras vidas e até sirva como base para elas.
O grande mérito do novo filme da Netflix é nunca ser totalmente explícito quanto a seus temas. Claro, há a crença, o sacrifício e a culpa cristã, mas o texto também aborda o machismo ("você não está aqui para nos questionar", diz um dos "chefes") e até a enfermagem. Para desenvolver suas protagonistas, Lelio opta por diminuir a importância de alguns personagens que ganham mais tempo no livro, como o jornalista Will (Tom Burke), que ainda tem papel essencial, mas menos desenvolvimento, e outros moradores da vila, transformados quase em figurantes.
É indispensável o destaque tanto a Florence Pugh quanto a Kila Lord Cassidy, que constroem uma relação de opostos, mas nunca de antagonistas, uma dinâmica que sustenta a dualidade do filme. A música de Matthew Herbert (“Uma Mulher Fantástica”) dá o tom ideal do suspense, enquanto a brilhante fotografia da australiana Ari Wegner (“O Ataque dos Cães”), quase toda em luz natural, contrastando a quase penumbra de ambientes fechados e a luz absoluta do campo, o que reforça a sensação de dois lados em conflito.
“O Milagre” não é perfeito, mas é forte, prende a atenção e, principalmente, recompensa o espectador. O sacrifício de alguns arcos em detrimento das protagonistas é uma escolha acertada para o filme manter sua força ao final. Acreditando ou não, o filme conta uma história que nos faz discutir sobre a construção individuais de verdades e o quanto de ficção há em cada uma delas.
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