Você se sentiu ofendido pelo vídeo “A Primeira Tentação de Cristo”, do Porta dos Fundos, ou foi movido pela raiva generalizada? Acredita que o serviço e o grupo devem ser punidos por ter produzido e lançado, pelo segundo ano consecutivo, um especial de Natal?
Resumindo, o filme de cerca de 45 minutos acompanha a festa de aniversário surpresa de 30 anos de Jesus (Gregório Duvivier), que chega do deserto acompanhado de um novo “amigo”, Orlando (Fábio Porchat). Jesus tenta esconder, mas a situação é bem clara: os dois estão em uma relação. Para completar o cenário, José (Rafael Portugal) parece não ter engolido muito bem a história da gravidez imaculada de Maria (Evelyn Castro) e Deus (Antonio Tabet), tratado pela família como um “tio”, vive tentando a mãe de Cristo.
O curioso é que “A Primeira Tentação de Cristo”, ao fim, tem uma mensagem positiva. Após dúvidas sobre o que fazer quando se descobre o filho de Deus, Jesus passa por uma provação e encontra sua real vocação. O filme lançado no início do mês é mais divertido e menos ofensivo do que o do ano passado, “Se Beber, Não Ceie”, que trazia Jesus como um mau-caráter disposto a matar e enganar em uma ceia com muito sexo e drogas. Vale ressaltar que, pelo filme do ano passado, o grupo ganhou o Emmy Internacional de Melhor Série de Comédia. Não é pouca coisa.
Em 2018, ao contrário do que tem sido dito, houve sim uma movimentação contrária ao especial. Grupos religiosos promoveram boicotes e igrejas pediram que seus fiéis não assinassem o serviço ou cancelassem suas assinaturas, mas o deste ano teve uma diferença: Eduardo Bolsonaro.
O 03 parece não ter visto o filme inteiro, mas não hesitou em ir ao Twitter criticá-lo: “Vale a pena atacar a fé de 86% da população?”, questionou, incomodado com o fato de Jesus ser gay e de se recusar a pregar a palavra do pai (o que deixa claro ele não ter visto o filme todo).
Olha… Parece que valeu a pena sim, Dudu. “A Primeira Tentação de Cristo” é a produção brasileira mais vista da história da Netflix, que já encomendou um novo especial de Natal para 2020. É perfeitamente compreensível que muitos não queiram assistir ao especial por considerá-lo ofensivo; podem, também, cancelar a assinatura e partir para uma concorrente (são muitas opções), todas manifestações válidas, mas é só. Pedir para que a Netflix retire o produto do ar é censura - pior ainda é pedir que alguém responda criminalmente por isso.
Uma petição para que tirem o vídeo do ar já tem mais de dois milhões de assinantes e deputados paulistas estão recolhendo assinaturas para a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar um crime “contra o sentimento religioso”: “se não respeitam a fé, vão respeitar o peso da lei”, diz um deles. Veja, Igreja e Estado, que devem sempre estar separados, se misturando.
A opção do cancelamento é sintoma da bolha em que muitos querem viver, nas quais não pode haver discordância. A mesma Netflix carrega vários títulos religiosos. Estão lá, por exemplo, as duas partes da tenebrosa “cinebiografia” de Edir Macedo, “Nada a Perder”, e as versões para o cinema das novelas “Os Dez Mandamentos” e “A Terra Prometida”, da Record. Além disso, uma breve busca por “religião” e você chega a títulos como “O Jovem Messias” e “Deus Não Está Morto 2”, entre muitos outros.
“A Primeira Tentação de Cristo” não ataca a fé de ninguém, mas sim os dogmas do cristianismo, a certeza de que tudo aquilo aconteceu exatamente da maneira como tem sido contado há milhares de anos. O Porta dos Fundos é provocador e o humor, quando não provoca, perde sua inteligência. Provocar, no caso, não é ofender, mas fazer o espectador refletir se tem acreditado em tudo sem nunca questionar. O que mudaria na sua fé se Jesus fosse gay? Você deixaria de acreditar? Ele deixaria de ser, pelo seu olhar, o filho de Deus? O messias, o salvador? A reposta provavelmente diz mais sobre você do que sobre o cristianismo ou o Porta dos Fundos.
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