Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

"O Tigre Branco", da Netflix, é excelente fábula anticapitalista

Adaptando livro homônimo de sucesso, "O Tigre Branco" é uma fábula anticapitalista, uma espécie de anti-"Quem Quer Ser um Milionário?"

Vitória
Publicado em 23/01/2021 às 01h54
Atualizado em 31/01/2021 às 02h57
Filme
Filme "Tigre Branco", da Netflix. Crédito: TEJINDER SINGH KHAMKHA

A Índia e um país distante do Brasil não apenas geograficamente, mas também culturalmente. Pouco conhecemos da “maior democracia do mundo” além de um ou outro filme da grandiosa indústria de cinema indiana, a Bollywood, que chega ao ocidente ou de obras ocidentais como “Quem Quer Ser um Milionário” ou “Lion: Uma Jornada Para Casa” - ambos protagonizados por um ator inglês, Dev Patel. “Tigre Branco”, que chega nesta sexta (22) à Netflix, traz uma Índia diferente, menos pop e mais cruel e realista do que a mostrada no filme dirigido por Danny Boyle e vencedor do Oscar.

Com uma narração em off que de vez em quando lembra “Os Bons Companheiros” (1990), de Martin Scorsese, “Tigre Branco” se oferece como um filme de crime, mas demora a abraçar esse seu lado. Durante mais da metade de sua projeção, o filme dirigido por Ramin Bahrani adaptando o best-seller de Aravind Adiga serve como uma preparação para seu ato final.

A história é narrada por Balram (Adarsh Gourav), um jovem nascido em um pequeno e miserável vilarejo da Índia. Inteligente, se destacava desde pequeno, mas acabou tendo que trabalhar no negócio da família. Mais velho, bola um plano para sair de lá e ir pra Deli, capital da Índia, trabalhar como motorista da família que explorava seu vilarejo.

Balram logo se aproxima de seu patrão, o ocidentalizado Ashok (Rajkummar Rao), e de sua esposa, Pinky (Priyanka Chopra, de "Quantico"). Aos poucos ele vai entendendo de onde vem toda a grana que sustenta o império de seus patrões e como funciona o mundo dos ricaços da Índia. Balram vê suas crenças religiosas sendo deixadas para trás; a religião, no fim das contas, é o capital. Como ele diz na abertura do filme, “o empresário indiano tem que ser ético e antiético, crente e descrente, malicioso e sincero, tudo ao mesmo tempo”.

O filme é conduzido pela narração de Balram sobre uma carta que escreve ao Primeiro-ministro da China às vésperas deste visitar a Índia, o futuro, afinal, passa pela Ásia, “pelos amarelos e marrons”. A vida de Balram é a história de jovens indianos nascidos nas castas mais pobres - é a partir dela que entendemos como funciona a sociedade por lá. Ao contrário de “Quem Quer Ser Um Milionário?”, “Tigre Branco” não romantiza a pobreza.

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Filme "Tigre Branco", da Netflix. Crédito: TEJINDER SINGH KHAMKHA

A narrativa acompanha os passos de Balram, de um jovem na tal miserável vila a um empresário em Bangalore, “O Vale do Silício da Índia”. A primeira hora do filme, vale dizer, se arrasta num ritmo lento e por vezes desinteressante. Apesar disso, o roteiro cumpre bem o papel de apresentar personagens e situações, mesmo se perdendo em uma ou outra subtrama.

“Tigre Branco” é um filme sobre conflito de classes. O roteiro, assim como o livro em que se baseia, mergulha na culpa criada pelo capitalismo, sentimento que surge em Ashok e Pinky quando convém - nesses casos, Balram é “da família” mesmo que tenha que dormir em um quarto cheio de baratas. “Por que você não me disse que dormia nessa situação?”, pergunta um dos personagens, que não faz nada para mudar.

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Filme "Tigre Branco", da Netflix. Crédito: TEJINDER SINGH KHAMKHA

O filme usa o tempo todo a metáfora do galinheiro para falar da Índia; as galinhas estão ali, sempre assistindo à morte de suas iguais e podendo ser as próximas sacrificadas, mas nunca se revoltam contra seus opressores. Balram faz parte do mecanismo de seus patrões, mas é tratado como inferior - como o protagonista diz: só existem duas castas na Índia, pessoas que têm coisas e pessoas que não têm.

Quando aprende como a riqueza de seus patrões foi construída, Balram entende também que ele precisa agir de forma similar para conquistar sua independência. O jovem se percebe descartável naquela engrenagem e precisa agir. O único exemplo de riqueza que ele conhece é o de seus empregadores, e ele não hesita em agir da mesma forma.

O grande mérito de “Tigre Branco” é também sua grande fraqueza, o ritmo. Se por um lado a cadência permite que entendamos a escalada que levou Balram até a posição em que inicia o filme, por outro, torna a primeira hora um tanto arrastada, afastando o espectador - a narrativa dá uma acelerada no terceiro ato, curiosamente após o clímax antecipado do filme.

Com uma atuação gigante de Adarsh Gourav e uma direção eficaz, “Tigre Branco” é quase um anti-”Quem Quer Ser um Milionário?”, um texto que não romantiza a miséria e tampouco credita à sorte ou ao acaso a ascensão social de seu protagonista. O filme de Ramin Bahrani é cruel, duro, tal qual o capitalismo pode ser. Fica a impressão de que alguns personagens poderiam ser mais  fortes se menos caricatos, mas, ainda assim, é um filme que se destaca no que se propõe a fazer e ainda desperta o senso crítico de seu público.

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