Em janeiro de 1368, a nobre Marguerite de Carrouges contou ao marido, o cavaleiro Jean de Carrouges, ter sido estuprada pelo escudeiro Jacques Le Gris. Revoltado com o ataque à sua honra, Jean levou o caso à corte, que não deu bola para ele. Mas a revolta persistiu e a insistência de Marguerite na acusação, questionada até mesmo pelo próprio marido, fez com que o caso chegasse ao Rei Charles VI. Jean se utilizou de um antigo decreto que permitia um duelo até a morte entre nobres se a disputa envolvesse um crime capital - o estupro, à época, era considerado um crime contra à propriedade do marido, não contra a mulher. A ideia era de que Deus jamais permitira uma injustiça e com certeza concederia a vitória do combate a quem estivesse dizendo a verdade.
A história desse último julgamento pelo combate é contada por Ridley Scott em “O Último Duelo”, em cartaz nos cinemas. O filme tem Matt Damon como Jean de Carrouges e Adam Driver como Jacques Le Gris, mas é Jodie Comer que brilha como Marguerite de Carrouges no texto escrito por Matt Damon, Ben Affleck e Nicole Holofcener.
O filme tem início nos momentos que antecedem o duelo, com todas as preparações prévias ao grandioso combate, mas a narrativa logo conduz o espectador ao passado, ao início da história, e a divide em três capítulos: os depoimentos dos três protagonistas durante o julgamento.
A primeira história a ser contada é a de Jean de Carrouges, uma narrativa construída como uma história de amor (pela esposa) e traição (do amigo). O depoimento de Le Gris vem na sequência, uma fala que o retrata como um herói hedonista e transforma seu ex-amigo em um bobalhão insensível e que nem sequer consegue conversar com a esposa, uma mulher letrada. Quando a versão de Marguerite ganha as telas, encaixamos as peças do que nos foi apresentado antes e enxergamos a verdade, o real retrato daqueles dois homens que lutam para controlar a narrativa de uma violência sofrida por uma mulher.
Ao contrário do que acontece, por exemplo, nos recém-lançados “A Menina Que Matou os Pais” e “O Menino Que Matou Meus Pais”, “O Último Duelo” não deixa a verdade oculta em algum lugar entre os depoimentos. Assim, o filme se constrói com estrutura similar à do clássico “Rashomon”, de Akira Kurosawa.
As narrativas são construídas com alguns eventos em comum, mas sempre com o depoente no centro da história. Isso fica claro desde a primeira cena, um brutal combate em que ambos se colocam como protagonistas e responsáveis por terem salvo a vida do outro. Apesar de longo e da possível impressão de estarmos presenciando a mesma história várias vezes, “O Último Duelo” nunca é cansativo e sempre consegue manter o interesse do espectador atento às nuances de cada versão.
Nada disso seria possível com atuações irregulares, mas o trio de protagonistas entrega detalhes que dão camadas ao texto, um olhar, uma palavra colocada com entonação diferente… Tudo é capaz de mudar o contexto dos acontecimentos. O roteiro é esperto ao construir a tensão para o derradeiro duelo, preparar o espectador para as viradas e oferecer algumas dicas da verdade antes mesmo do depoimento final - como na cena em que Le Gris se diverte com Pierre (Ben Affleck) e algumas mulheres ou quando se contradiz sutilmente eu seu depoimento quanto à capacidade de Carrouges em combate.
No trio, Comer se destaca. Sua Marguerite tem um ar angelical e inocente no relato do marido, mas ganha malícia no de Le Gris e força no próprio depoimento. Matt Damon se sai bem como o nobre mais bruto, o sujeito conhecido por sua força em combate, não por sua inteligência. Adam Driver, por sua vez, tem o charme a arrogância digna da nobreza que tem tudo a seu dispor; suas cenas com Ben Affleck são ótimas.
“O Último Duelo”, em seu clímax, é o embate físico entre dois nobres. Em sua essência, porém, é a luta de uma mulher para ser ouvida. Em determinado momento, uma personagem diz a Marguerite “não existe o certo, apenas o poder dos homens”. A vítima é questionada por todos ao seu redor mesmo após contar sua história. O texto e a condução de Scott criam uma narrativa lenta (nunca chata) e que leva o espectador a questionar a verdade antes de assistir a ela.
Essa cadência narrativa é pontuada por violentos combates históricos sempre registrados com brutalidade e uma sujeira. Ridley Scott opta por cenários claustrofóbicos e mantém a câmera perto da ação durante o combate para enfatizar a violência dos golpes. O duelo final é ótimo e é impossível não lembrar de “Gladiador”, que rendeu ao diretor uma de suas quatro indicações ao Oscar (as outras foram por “Thelma & Louise”, “Falcão Negro em Perigo” e “Perdido em Marte”, como produtor).
“O Último Duelo”, inclusive, poderia ser um filme feito para a cerimônia, um épico com um recorte histórico que dialoga com a contemporaneidade na luta de uma mulher por voz. Comandado por um cineasta de prestígio e escrito por Affleck e Damon, vencedores do Oscar de Melhor Roteiro por “Gênio Indomável”, ao lado de Nicole Holofcener, indicada pelo ótimo “Poderia me Perdoar?”, o filme tem astros em ascensão em Adam Driver e Jodie Comer e uma pesada campanha de divulgação, um prato cheio para a Academia
Apesar disso, “O Último Duelo” vai além dessa fórmula, fugindo dos recursos narrativos padrões e até mesmo ridicularizando os nobres, tornando-os uma espécie de alívio cômico. O texto, vale ressaltar, nunca questiona a veracidade da afirmação de Marguerite, apenas mostra quão absurda era a reação da sociedade que culpa vítima. Ridley Scott não suaviza a verdade para tornar seu consumo mais fácil, e sim ressalta a importância da se lutar para que ela seja ouvida.
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