Na peça “O Deus da Carnificina”, da dramaturga francesa Yasmina Reza, dois casais se encontram para jantar após seus filhos, ambos de 11 anos, se envolverem em uma briga em um parque público. A ideia é discutir o ocorrido e resolver as diferenças; o encontro começa bem, civilizado, mas logo descamba para o caos, revelando segredos e crenças absurdas da intimidade de cada casal. O texto, uma escalada absurda de conflitos, foi adaptado mundo afora, inclusive no Brasil, e virou um bom filme homônimo (disponível na Paramount+) protagonizado por Jodie Foster, Christoph Waltz, Kate Winslet e John C. Reilly.
A princípio, “Os Outros”, série original Globoplay que terá seu primeiro episódio exibido nesta segunda (26) em “Tela Quente”, logo após “Terra e Paixão”, parte da mesmíssima premissa: uma briga entre adolescentes e um subsequente encontro entre os pais para discutir a situação. A série, porém, sai de dentro do apartamento e se passa quase toda em um condomínio de classe média ascendente, sabendo utilizar bem sua longa duração para expandir os conflitos.
Criada por Lucas Paraizo (“Sob Pressão”) a série tem início com um breve prólogo que mostra Cibele (Adriana Esteves) e Amâncio (Thomás de Aquino) chegando à nova casa, um apartamento em um amplo condomínio na Barra da Tijuca. A compra significa a realização de um sonho, a casa própria (“em dez anos tá pago”, pontua Amâncio), um lugar seguro para o pequeno Marcinho crescer longe dos perigos da rua.
Ao fim dessa introdução, porém, vemos Marcinho adolescente (Antonio Haddad) se envolvendo em uma briga com Rogério (Paulo Mendes) na quadra e levando a pior. Desesperada, Cibele parte em socorro do filho e ameaça prestar queixa contra o jovem filho de Wando (Milhem Cortaz) e Mila (Maeve Jinkings), que insiste que o filho peça desculpas a Marcinho, o que acaba não dando muito certo. A partir daí, o que se vê em tela é uma escalada de situações absurdamente reais, algumas até inspiradas em fatos, que cresce de maneira inesperada e transforma aquela premissa do episódio inicial em algo totalmente diferente.
Em 12 episódios de 45 minutos (em média) “Os Outros” introduz personagens como Sergio (Eduardo Sterblitch), um ex-policial, e a síndica Dona Lúcia (Drica Moraes), que parecem não acrescentar muito em um primeiro momento, mas que acabam se tornando peças essenciais nas engrenagens da série.
É muito interessante como o texto entende as necessidades da série e de uma narrativa longa. Os personagens de “Os Outros” nunca permanecem no mesmo lugar por muito tempo, há sempre algo que os leva de um ponto a outro, que os movimenta, que dá a eles motivos para isso. Assim, a série manipula a expectativa do espectador – é impossível não simpatizar com Cibele no início, mas a personagem se transforma em algo completamente diferente com o tempo. Seu contraponto é Wando, inicialmente um potencializador da briga entre os meninos, mas que também ganha certa profundidade (o que não é necessariamente bom).
É curioso como Amâncio e Mila, inicialmente à margem de seus cônjuges, ganham relevância e arcos próprios no decorrer da série. Sérgio e Dona Lúcia, que completam o núcleo principal, se beneficiam justamente da cadência da série para trabalhar seus passados. Ambos têm no mistério que os cerca seus maiores trunfos, e não é à toa que o roteiro demora a introduzir esses arcos, o fazendo quando já temos algumas desconfianças sobre eles. Ainda, quando tudo parece de certa forma estabilizado, um novo elemento como Lorraine (Gi Fernandes) chega para bagunçar um pouco o conforto.
Um dos grandes méritos de “Os Outros” é ser uma série com cara de série. Essa afirmação pode parecer redundante, mas é importante ressaltar que a série original Globoplay se entende como uma narrativa seriada de doze episódios, tendo plena ciência de seu ponto de partida e, aparentemente, de onde quer chegar. A série nunca passa a impressão de estarmos vendo um filme dividido em várias partes ou tampouco uma mini-novela, fazendo ótimo uso de desenvolvimento episódico (começando sempre pelo choque) e ganchos, principalmente se considerarmos que os episódios são lançados espaçadamente (quartas e sextas).
Apesar de oferecer uma grande narrativa e um ótimo desenvolvimento de personagens, a produção sofre com a artificialidade em alguns momentos. Algumas cenas, por exemplo, são muito esvaziadas – o condomínio, apesar de inúmeras torres, quase sempre parece pouco vivo, com poucas pessoas além dos atores circulando por eles.
Algo semelhante acontece durante uma perseguição inicialmente cheia de carros e motos pelas ruas, mas todos parecem desaparecer num piscar de olhos quando o texto precisa encerrar a sequência e não teria como fazê-lo em uma via movimentada. Há também o incômodo de alguns estereótipos na construção da identidade dos adolescentes, mas nada que comprometa.
Sem entrar em spoilers, porque cada virada é realmente importante, a série é ótima ao lidar de forma natural com temas como a violência urbana, as milícias, a idealização da segurança das bolhas condominiais e, principalmente, com relacionamentos humanos. Seus personagens fazem escolhas nem sempre muito inteligentes, mas algumas totalmente compreensíveis; ninguém é cem porcento bom ou totalmente equivocado. Neste ponto, a série do Globoplay lembra muito o sucesso “Treta”, da Netflix.
Com ótimas atuações de todos os envolvidos (os adultos estão impecáveis), sentimentos humanos, erros, acertos, escolhas e renúncias, a série se aproxima da realidade do espectador e desperta uma identificação imediata. Tensa e quase visceral o tempo todo, “Os Outros” não é uma obra fácil, confortável, até carecendo um pouco de um alívio cômico, mas é uma aula de narrativa seriada e uma das grandes séries lançadas em 2023.
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