Tendo sido criança nos anos 1980 e adolescente nos 90, obviamente não vi Pelé jogar. Craques, para mim, eram Leandro, Andrade, Adílio, Junior e Zico, em um primeiro momento, e, mais tarde, Marco Van Basten, Ruud Gullit, Careca, Romário e o saudoso Diego Maradona. Apesar disso, na minha cabeça nunca houve dúvida sobre quem teria sido o melhor de todos os tempos: Pelé.
Isso, claro, se dá muito em função de os formadores de opinião que cresci acompanhando, principalmente jornalistas esportivos, a todo tempo ressaltarem a grandeza do Rei. As novas gerações, porém, já têm relação diferente com Pelé; em tempos de oferta de conteúdo praticamente infinito, acompanhar a carreira de Lionel Messi, Cristiano Ronaldo ou até mesmo Neymar, e vê-los brilhando pelo mundo em tempo real, faz parecer que aquelas imagens do início da segunda metade do século passado são ultrapassadas. Frases como “naquela época era fácil jogar futebol” são normais entre os jovens.
“Pelé”, documentário lançado nesta terça (23) pela Netflix, infelizmente não vai mudar essa percepção. Dirigido por Ben Nicholas e David Tryhorn, o filme conta a trajetória de Pelé nos 12 anos entre as copas de 1958 e 1970, sempre com foco nas competições. Assim, com entrevistas de ex-jogadores e especialistas, acompanhamos a transformação da revelação do Santos no maior jogador do mundo.
As primeiras imagens mostram a abertura da Copa do México 1970, o que seria praticamente “a última dança” de Pelé com a Seleção. Logo depois, corta para a imagem do ex-jogador fragilizado, entrando com um andador na sala de filmagem. Não se engane, apesar desse início revelador (Pelé sempre evitou se mostrar fragilizado), nada do que vem a seguir irá se aprofundar na vida de Edson Arantes do Nascimento.
“Pelé”, o documentário, tem méritos. Os diretores sustentam a narrativa colocando o então jogador como parte essencial da formação da identidade sócio-cultural do brasileiro na segunda metade do Século XX. O trauma da Copa de 50 deixou marcas que Pelé (e seus companheiros) fez a população superar com a vitória na Copa de 1958. A partir desse ponto, o jogador se tornou talvez a primeira grande estrela esportiva global do Brasil. O melhor do mundo tinha nome brasileiríssimo, era um cara carismático e disponível, ótimo para autoestima do povo brasileiro à época.
Todo essa construção é sustentada por jogadores que atuaram com Pelé (Rivelino, Jairzinho, Amarildo, Pepe, entre outros) e por gente como os jornalistas Juca Kfouri, José Trajano e Paulo César Vasconcelos, e até pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um renomado sociólogo.
O roteiro até ensaia se aprofundar em algumas questões polêmicas, como as relações extraconjugais e os filhos fora dos casamentos - alguns até demoraram a ser reconhecidos por Pelé. Outra questão importante, mesmo pouco falada pela peça central do filme, são as críticas que o ex-jogador sofreu por estar sempre ao lado de governantes no período da ditadura militar brasileira - Pelé se justifica ao dizer que nunca se interessou por política, além de, à época, estar sempre viajando com o Santos.
Essa ausência de posicionamento do craque é corrigida pelo roteiro nas falas dos entrevistados, que até minimizam um pouco a questão, mas ainda assim condenam o comportamento de Pelé. “Se eu dissesse que não sabia de nada (das coisas que aconteciam após o AI-5), estaria mentindo, mas nós não sabíamos de muita coisa”, diz o ex-jogador em determinado momento.
O filme faz bom uso de imagens de arquivo, principalmente de Pelé com a Seleção Brasileira nas Copas, mas também tem alguns registros de jogos do Santos. Nada muito raro para quem acompanha futebol.
Ao fim, “Pelé” é um filme difícil de ser analisado por quem conhece a trajetória de seu homenageado. Há pouca novidade, mas traz imagens e histórias que são sempre interessantes de serem revisitadas. Dirigido por dois britânicos, que já acompanharam a Seleção Brasileira na série “Tudo ou Nada”, sobre a conquista da Copa América de 2019, o filme é descaradamente um produto feito para exportação, ou seja, tem casa perfeita no alcance da Netflix.
É de se lamentar, porém, a escolha de construir o filme focado nas Copas do Mundo, pois fica a impressão de que ele pouco fez para o Santos e, mais tarde, para o Cosmos - mesmo em fim de carreira, ele foi o responsável por levar o futebol, o nosso, o de verdade, para os EUA. Em um filme sobre Pelé, para o público estrangeiro, esse arco jamais poderia ser apenas uma nota de rodapé.
Pelé é um astro global, conhecido em todo o mundo e até mais respeitado lá fora do que por aqui, e, por isso, “Pelé”, o filme, faz sentido. O documentário da Netflix pode parecer mais do mesmo para os brasileiros, mas traz uma narrativa interessante para o resto do mundo ao traçar paralelos entre a ascensão do Rei do Futebol e a História do Brasil.
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