Um dos mais importantes e influentes autores de ficção científica, William Gibson é responsável por pilares do cyberpunk, com o livro “Neuromancer”, e é o criador do termo ciberespaço, no conto “Burning Chrome”. Muitos dos conceitos imaginados por ele pareciam absurdos à época, mas se mostraram totalmente plausíveis anos depois, pois o autor constrói sua ficção totalmente sustentada por possibilidades plausíveis. Suas obras, porém, são difíceis de serem adaptadas para as telas, servindo muito mais como influências para tantas outras (“Matrix”, por exemplo) do que se tornando um novo produto - Gibson é roteirista de “Johnny Mnemonic” (1995) e de alguns episódios de “Arquivo X”, mas seu trabalho no cinema é pequeno.
“Periféricos”, lançado originalmente em 2014, talvez seja seu livro mais adaptável, com um universo amplo e conceitos avançados, mas situado em ambientes mais “fáceis” de serem levados para as telas. Por isso, não surpreende que uma adaptação seja agora lançada como série em uma das grandes apostas da Amazon Prime Video para o fim do ano; dois episódios já estão disponíveis na plataforma e novos serão lançados sempre às sextas-feiras, estratégia de distribuição que tem funcionado para a empresa de Jeff Bezos.
A distópica trama se passa em um futuro próximo e em uma pequena cidade rural dos EUA, onde Flynne Fisher (Chloë Grace Moretz) vive com o irmão, Burton (Jack Reynor), e cuida da mãe doente (Melinda Page Hamilton). Os irmãos ganham dinheiro fazendo alguns bicos ilegais e usando seus talentos como jogadores de jogos de guerra em equipes de milionários. Um dia, Burton pede para Flynne testar um novo headset de realidade virtual e, ao se conectar ao apetrecho, a jovem está andando de moto em uma Londres futurista e controlando tudo com sua mente - a experiência é incrível e o dinheiro do teste é ótimo, mas tudo logo se torna bem sinistro.
Quando Flynne retorna ao mundo “real”, descobre haver uma recompensa por sua família, tudo em função do que descobriu e viveu durante sua experiência no “jogo” e na Londres do futuro, ou seja, não era uma simulação, mas uma versão do futuro se conectando com a realidade de 2032 (parece spoiler, mas é a premissa da série e está em todos os materiais de divulgação).
Criada por Johnathan Nolan e Lisa Joy, dupla responsável por “Westworld”, “Periféricos” em muito se assemelha à série da HBO, da premissa à estética narrativa. O texto toma algumas liberdades questionáveis para adaptar aspectos da obra de William Gibson - não há na série o discurso de um futuro obcecado pelas aparências e pelas celebridades (algo muito bem explorado pelo autor também em “Idoru”), ou a construção de personagens estranhos que garantem complexidade àquele universo; a série tem uma construção mais direta de personagens e se preocupa mais com a ação e com o “encantamento” de possibilidades futuras.
O texto da série também confere ares mais heroicos a Flynne, a distanciando bastante da relutante personagem do livro e tornando-a mais próxima de Dolores (Evan Rachel Wood), de “Westworld”; além disso, o roteiro torna Londres um cenário mais distante e estranho. As mudanças não chegam a incomodar e provavelmente parecerão grandes acertos para o público não iniciado no livro de Gibson. Isso prova que “Periféricos” funciona como série, com algumas boas surpresas, uma construção de mundo eficiente e boas sequências de ação, mas também mostra o lançamento da Amazon Video como uma obra buscando um caminho “fácil”, se aproximando de algo genérico, ao amenizar a estranheza que torna seu material original tão único. O livro, oito anos após seu lançamento, ainda dialoga excepcionalmente bem com a sociedade digital e as narrativas criadas por algoritmos (e talvez o faça até melhor hoje do que em 2014).
Assim, ao fim, “Periféricos” pode ser visto tanto uma oportunidade desperdiçada de levar o olhar de William Gibson para as telas, pois é um livro praticamente pronto para isso, quanto como uma boa série de ação com ficção científica aparentemente complexa, mas que não afasta os não iniciados no gênero. Tudo depende da relação que o consumidor tem com o material original e o quão surpreendido ele será por conceitos de ficção científica que não necessariamente são novos, mas que ainda não estão desgastados.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.