Depois do insosso “Pinóquio” de Robert Zemeckis lançado pela Disney+, a assinatura de Guillermo del Toro (“O Labirinto do Fauno”, “A Forma Da Água”) dava esperanças, mas a sensação com o lançamento de mais uma versão da fábula escrita em 1883 por Carlo Collodi era de “precisamos realmente de mais uma versão de uma história tão conhecida?” - a história já foi adaptada para as telas 21 vezes! Não contávamos, porém, com a capacidade do cineasta mexicano de contar histórias de maneira encantadora. Em suas mãos, “Pinóquio”, em sua 22ª versão, ganha ares políticos, vira poesia e adquire uma carga emocional devastadora.
Lançado pela Netflix, “Pinóquio Por Guillermo del Toro” (sim, o nome do diretor está no título do filme) é uma obra-prima do cinema contemporâneo. Todo realizado em animação stop-motion, o filme de del Toro e Mark Gustafsson, um especialista em animações, é delicado de seu primeiro frame à sequência final, uma jornada muito mais densa e complexa do que poderíamos imaginar.
Guillermo del Toro leva a história de Gepeto (voz de David Bradley) para a Itália pré-Segunda Guerra, um país controlado pelo fascismo de Benito Mussolini. É nesse cenário que o querido marceneiro perde seu filho, Carlo, e entra em uma espiral de autoflagelo. Uma noite, bêbado e consumido pela depressão, constrói um boneco de madeira, um substituto para seu filho. Sua dor é correspondida por uma fada, que garante vida ao boneco.
A manhã que sucede o encantamento é Guillermo del Toro em sua essência. O encantamento de Pinóquio (Gregory Mann) com todas as novidades que lhe são oferecidas é um contraste gigante ao terror estampado no rosto de Gepeto. “Pinóquio Por Guillermo del Toro” dialogo facilmente com dois dos melhores filmes do cineasta mexicano, “A Espinha do Diabo” (2001) e “O Labirinto do Fauno” (2006), ambos ambientados na Espanha durante o regime do fascista Francisco Franco.
Pinóquio se torna objeto de desejo do regime fascista, um “soldado perfeito”, pois não pode morrer, e também da trupe circense comandada pelo Conde Volpe (Christoph Waltz, cumprindo seu papel de ótimo vilão), que quer o boneco com vida como sua principal atração. A narração Grilo (Ewan McGregor) dá o devido tom ao filme; o personagem é também quem serve de “guia” para Pinóquio na sua missão de o transformar em um bom garoto. Cabe a ele boa parte do humor do filme de Guillermo del Toro, com boas piadas e observações de mundo, quase como se dialogasse com o espectador durante o filme.
Sem nem sequer tocar em sua essência, Del Toro transforma “Pinóquio” em um filme político. Mussolini, “il dulce”, é ridicularizado pelo filme, que não se abstém de tocar em temas como o modelo de espiral do silêncio estudado por Elisabeth Noelle-Neumann. É constrangedor para o espectador ver adultos e crianças fazendo a saudação fascista em tela, mas o roteiro de del Toro e Patrick McHale (“Hora da Aventura”) busca justamente esse incômodo. O campo de treinamento para jovens fascistas é brutalista, duro, devastador, mas retratado como uma questão de honra para os recrutas - não muito diferente, por exemplo, da empolgação dos jovens soldados antes de irem a campo no excelente “Nada de Novo no Front”.
Ao mesmo tempo em que busca o brutalismo e o necessário incômodo com o fascismo, “Pinóquio por Guillermo del Toro” aposta no encantamento. A animação em stop motion é impecável, com alguns quadros absolutamente estonteantes que impossibilitam o espectador desviar o olhar e o obrigando a estar atento a todos os detalhes. O texto também reforça o aspecto fantástico quando transforma as “mortes” do protagonista em um fator importante da trama, dando a ela um ar fantástico. É justamente neste aspecto, também, que o filme garante sua carga dramática. Com o simples uso de palavras como “fardo” e “covarde”, o filme trata da relação entre pais e filhos, a essência da história criada por Carlo Collodi - o Pinóquio de del Toro pode introduzir novas questões, mas mantém o arco de pai e filho como sua força motriz.
É muito interessante como o texto constrói personagens complexos e inclui camadas até em seus coadjuvantes. O macaco Spazzatura, incrivelmente dublado por Cate Blanchett apenas com grunhidos (assistam ao mini-documentário também na Netflix), se transforma em um dínamo da rebeldia, da transformação. Em contrapartida, o soldado fascista Podesta (Ron Pearlman), representa o poder autoritário na vila em que Gepeto mora, um cumpridor de ordens a serviço de Mussolini e o sujeito que instaura o clima de “está tudo bem” baseado no medo.
“Pinóquio por Guillermo del Toro” continua sendo uma fábula, mas lida com questões como o fascismo, a relação entre pai e filho e o luto. Enquanto o regime de Mussolini nunca encontra o arco fantasioso do filme, Gepeto, Pinóquio, o Grilo e as fadas estão sempre do outro lado, oferecendo uma dualidade, um escape; como nas outras obras de del Toro, a fantasia é um escape para uma realidade de repressão.
Guillermo del Toro consegue pegar um clássico, uma história conhecida por todos, e colocar nela sua assinatura fantasiosa. “Pinóquio por Guillermo del Toro” é um espetáculo visual, um filme que conquista o mais duro espectador com bom humor e encantamento, uma trama que transforma em emoção alguns conceitos inimagináveis ao misturar fatos à fantasia. Talvez o Oscar de Melhor Animação em 2023 tenha encontrado seu dono, mas não é absurdo colocar a animação de del Toro e Mark Gustafson entre os candidatos a Melhor Filme.
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