Dirigido pelo francês Romain Gavras e lançado pela Netflix, “Athena” já começa tenso. Após um vídeo de policiais espancando e matando Idris, um adolescente de 13 anos, se tornar viral, moradores do conjunto habitacional que dá nome ao filme, e onde morava o adolescente assassinado, se reúnem na delegacia de um subúrbio de Paris para a declaração da polícia sobre o caso.
Inicialmente acompanhamos Abdel, um laureado soldado francês, em uma caminhada dolorosa. Irmão do jovem morto, é ele quem comunica a jornalistas, a seus familiares e aos amigos o estado das investigações - a polícia ainda não identificou os agressores, mas promete puni-los assim que identificados. Ele pede que todos mantenham a calma e acreditem na justiça, mas do outro lado está Karim (Sami Slimane), irmão de Abdel e Idris, em busca de justiça. Um coquetel molotov dá início ao caos que acaba na invasão da delegacia com roubo de armas e veículos antes de voltarmos para o conjunto habitacional prestes a ser transformado em um campo de batalha. Essa sequência inicial dura 11 minutos e é filmada em um plano-sequência que impressiona pela naturalidade e por nos colocar dentro da ação.
“Athena” mistura drama familiar, filme de máfia e tragédia grega a uma qualidade técnica impressionante. Gavras entrega vários planos-sequência durante os 90 minutos de duração do filme, mas faz deles um detalhe. O roteiro, escrito por Gavras em parceria com Elias Belkeddar e Ladj Ly (roteirista e diretor do ótimo “Os Miseráveis”, de temática similar), constrói a tensão de maneira exemplar em uma grande escalada de violência que nos faz acreditar que tudo pode acontecer.
“Até identificarem os policiais, é guerra”, brada Karim a seus pares entrincheirados para resistir à violência da polícia francesa. É ao lado de Karim que somos colocados em meio ao caos desde o início, acompanhando a invasão à delegacia, o retorno ao conjunto e, posteriormente, a invasão da polícia, tudo de maneira brutalmente crua e dura justamente por se aproximar tanto da violência policial que vemos também contras as minorias no Brasil.
Os conjuntos habitacionais dos subúrbios franceses são normalmente habitados por negros e árabes, filhos da colonização francesa na África, pessoas que sofrem o preconceito na pele desde cedo em um país avesso a imigrantes. Como exemplo, o atacante francês Karim Benzema, filho de argelinos, durante muito tempo se recusou a cantar o hino do país nos jogos da seleção por acreditar que ele “incentiva a guerra”; também filho de argelinos, o ex-craque Zinedine Zidane também não entoava a “Marselhesa”.
“Athena” é certeiro ao mostrar esse conflito social sem ser didático; todos os “rebeldes” são negros ou têm nomes árabes, já os policiais acabam representados na figura de um francês loiro e de olhos claros. As diferenças estão expostas o tempo todo, tornando qualquer explicação um exagero. O filme também opta pela não-exposição ao falar do preconceito social e racial, da brutalidade policial e da falta de confiabilidade da população nos meios de comunicação.
Premiado diretor de vídeo clipes e filho do grande cineasta Costa-Gavras, Romain Gavras é impecável no comando de seu terceiro filme. Em tomadas sempre longas, sua câmera passeia por diferentes cenários, acompanhando personagens em cenas de ação e em meio ao caos - é simplesmente impossível tirar os olhos da tela. Impressiona como “Athena”, com um início tão explosivo, consegue manter o ritmo e a crescente até o fim. A virada que dá início ao terceiro ato é ótima e oferece ao texto novos caminhos não menos poderosos.
O filme ainda introduz um quarto irmão, Moktar (Ouassini Embarek), um traficante de drogas que vê seu negócio ameaçado pela revolução iniciada pelo irmão, e outros personagens aparentemente pouco importantes - um deles reaparece em certo ponto e dá até um ar mais fantasioso à conclusão do filme.
“Athena” é um filme urgente, mas que nunca perde seu senso pop. Romain Gavras cria sequências e planos memoráveis. É possível ver a influência do cinema de seu pai, com referências a “Estado de Sítio” (1972), mas também de nomes mais contemporâneos como Paul Greengrass (“Ultimato Bourne”) e George Miller (“Mad Max: Estrada da Fúria”), de quem Gavras pega emprestado o senso de espetáculo.
O drama familiar do filme o torna ainda mais assimilável, pois oferece ao público reações distintas em dois protagonistas. Karim quer a guerra, o conflito, mas Abdel, que já viu a guerra, quer evitar tragédias, quer o diálogo com o irmão e com os policiais. O texto é ótimo em trabalhar camadas distintas, como a dor de imigrantes de deixar novamente suas casas para fugir de um novo conflito - famílias inteiras deixam o conjunto Athena com malas em busca de um lugar onde possam encontrar paz.
“Athena” é ótimo, um dos filmes mais poderosos do ano. Romain Gavras entrega um trabalho daqueles difíceis de serem esquecidos justamente por dialogar com as possibilidades reais - nada no filme é distante do que se vive em países de grande desigualdade social, das violentas “exceções” da rotina.
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