Desde o início é possível perceber que algo não está certo em “Por Trás de Seus Olhos”, minissérie britânica da Netflix. Todos os três personagens que formam o triângulo amoroso que ilustra o pôster da série são construídos com marcas pregressas e carregam algo misterioso - dos estranhos sonhos de Louise (Simone Brown) à complexa relação entre Adele (Eve Hewson, filha de Bono Vox) e David (Tom Bateman). Apesar da construção, há poucos indícios no roteiro que preparam o espectador para o terceiro ato, mas chego lá daqui a pouco.
“Por Trás de Seus Olhos” é construída como um thriller de relacionamento. Mãe divorciada, Louise descola um ‘vale night’ e marca de encontrar uma amiga em um bar. A amiga não aparece, mas o destino coloca David em seu caminho. Recém-chegado da Escócia e ainda deslocado em Londres, ele é charmoso e simpático. Ao fim da noite, um beijo e nada mais. O problema é que no outro dia, quando chega para trabalhar, Louise descobre que David é seu novo chefe.
Louise descobre, também, que David é casado com Adele. Após uma breve conversa, os dois decidem colocar uma pá de cal em tudo aquilo e deixar a relação apenas no campo profissional. As coisas mudam quando Louise conhece Adele, uma mulher simpática e solitária, sem amigos na cidade, e com ela desenvolve uma relação próxima de amizade - tudo, claro, sem o conhecimento de David.
Aos poucos, sob a percepção de Louise, vamos percebendo algo errado na relação de David e Adele. Há controle excessivo, medo e abusos psicológicos, mas também há algo além. “Por Trás de Seus Olhos” utiliza flashbacks para tentar se aprofundar na história de Adele com algumas histórias de quando esteve internada em uma clínica de reabilitação; é lá que conhecemos Rob (Robert Aramayo), jovem viciado que a ajuda durante todo o processo, e também que conhecemos um pouco do passado da personagem.
“Por Trás de Seus Olhos” tem seis episódios e arcos bem definidos. Durante as duas primeiras partes, a história não parece caminhar muito, mas até funciona como um drama de relacionamentos. Louise, apesar de protagonista, é a peça que faz o espectador entrar no que deveria ser a verdadeira história da série, o relacionamento abusivo de David e Adele. Logo, porém, o roteiro desanda.
Baseado no livro homônimo de Sarah Pinborough, “Por Trás de Seus Olhos” toma um rumo completamente inesperado em seu arco final e o faz sem antes ensaiar essa possibilidade ao espectador. De repente, o que parecia apenas uma peculiaridade, um recurso narrativo para reforçar uma certa estranheza naqueles personagens, ganha proporções gigantescas e até inacreditáveis - é uma trapaça do roteiro para impactar a audiência e supostamente ganhar força pela reviravolta inesperada.
O problema, vale ressaltar, não está necessariamente na solução, mas na forma como ela é apresentada. Durante a maior parte dos seis episódios, não sabemos ao certo com quem devemos nos importar na série - Louise é rasa, construída apenas para reforçar sua bondade; Adele alterna entre sociopatia e esposa abusada, enquanto David é apenas raivoso durante a maior parte do tempo. Isso sem falar de Rob, que acaba se tornando o ponto de virada do texto sem que tenhamos empatia nenhuma por ele.
O episódio final chega a ser absurdo e faz com que nos questionemos acerca do que estamos presenciando: eles realmente terão coragem de jogar essa carta? Quando “Por Trás de Seus Olhos” se encerra, a sensação que fica é de termos sido enganados por cerca de quatro horas antes de a minissérie mostrar o que realmente queria - e talvez seja esse mesmo o intuito, se nos colocarmos no lugar de alguns personagens.
Ao terminar a série, decidi não escrever de imediato e esperar seu fim assentar na minha percepção. Ao invés de aceitá-lo, como às vezes acontece, passei a contestá-lo ainda mais. A conclusão de “Por Trás de Seus Olhos” é sádica e cruel, mas não é por isso que não agrada - há paralelos interessantes traçados pela narrativa (Adele e Rob, Adele e Louise), mas o roteiro (e o livro, que tem o mesmo fim) descarta tudo em função do impacto. Trata-se do estilo de narrativa que se sustenta em cima da força que acredita ter seu ‘plot twist’ ao invés de utilizá-lo a seu favor.
A minissérie tem ótima fotografia, boas atuações e constrói um clima de tensão psicológica interessante antes de revelar que orbita em volta de um campo que destoa do resto da trama. “Por Trás de Seus Olhos”, ao fim, é uma experiência que pode ser satisfatória ou irritante - tudo depende da tolerância do espectador ao ser enganado.
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