Era questão de tempo, todos sabiam, até que o universo de “101 Dálmatas” fosse reimaginado pela Disney em sua leva recente de live-actions. A clássica animação da Disney, lançada em 1961, já foi transformada em filme com atores “de carne e osso” nos anos 1990, com Glenn Close no papel da vilã Cruella de Vil. Apesar de populares entre as crianças, tanto o filme quanto sua continuação não foram bons o suficiente para levar a franquia adiante no mesmo formato.
Eis que agora chega “Cruella”, filme que não chega a ser um prelúdio para “101 Dálmatas”, mas sim uma história de origem da personagem quase no estilo “Ultimate” que a Marvel lançou no início dos anos 2000 (quando quadrinhos ainda eram o sustento da empresa). Lançado como conteúdo premium no Disney+ (R$ 69,90), o filme dirigido por Craig Gillespie (“Eu, Tonya”) tem na oscarizada Emma Stone seu grande chamariz.
A trama tem início em 1964, quando acompanhamos Estella às voltas com os valentões na escola. Também acompanhamos os trágicos acontecimentos que levam a jovem a viver nas ruas de Londres. Nada disso, porém, é capaz de tirar um sonho de sua cabeça: se tornar uma grande designer no mundo da moda.
Dez anos depois, Estella (Emma Stone), vive de elaborados golpes com sua gangue de ladrões nas ruas de Londres. Um dia, porém, seu talento chama a atenção da melhor fashionista da cidade, a Baronesa Von Hellman (Emma Thompson), e passa a trabalhar para ela. O que parecia ser o emprego dos sonhos logo se torna um pesadelo pelas condições de trabalho e também por uma revelação que vai mudar a vida de Estella. Desiludida, ela abraça um lado sombrio e cria uma alter-ego, Cruella, para invadir todos os eventos da Baronesa e roubar os holofotes. A rivalidade entre as duas é o ponto alto do filme e rende ótimas sequências - Cruella é punk, agressiva e irônica, uma vilã em busca de sua identidade, ao contrário de sua antagonista, uma figura já consolidada na vilania.
Mais do que uma história de origem, “Cruella” é uma história de autodescobertas com várias referências interessantes e nem sempre óbvias. A transformação da personagem tem ares de cinebiografia, com narração da própria protagonista, e uma pegada comportamental calcada na ambientação do filme, a Londres dos anos 1970 e a explosão do movimento punk.
O recurso de contar a história pelo olhar de Cruella funciona para o que a Disney quer, a humanização de uma vilã histórica levando o público a torcer por ela. Os anti-heróis e até mesmo os vilões estão mais em alta do que nunca depois do sucesso de séries como “Sopranos”, “Breaking Bad” e filmes como “Coringa”.
Gillespie opta por um humor peculiar, às vezes um pouco mais cruel, e uma estética que mistura alta costura e subversão, impecável. O figurino ficou por conta de Jenny Beavan, 10 vezes indicadas ao Oscar e vencedora na categoria por “Mad Max: Estrada da Fúria” (2016) e “Uma Janela Para o Amor” (1985), dois trabalhos completamente diferentes que dão uma noção do escopo da figurinista.
O estilo mais cru e próximo da realidade direciona o filme para um público mais adulto, o que pode afastar as crianças de uma personagem icônica antes vista de outra forma, mas também pode atrair um novo público filme; basta quebrar a barreira do nicho Disney, pois “Cruella”, dentro do possível, se distancia o máximo desse universo.
A estética do filme é acompanhada pelo roteiro, que mistura o tom clássico da Disney a narrativas mais modernas. Na equipe de roteiristas estão nomes como Tony McNamara (“A Favorita”), Dana Fox (“Home Before Dark”) e Aline Brosh (“O Diabo Veste Prada”) - em alguns momentos é possível identificar referências e assinaturas de cada um deles. Essa pegada também é acompanhada pela trilha sonora que tem The Clash, Rolling Stones e Deep Purple com músicas que ajudam a dar o tom das cenas mesmo que de forma previsível.
“Cruella” tem um problema de exposição narrativa, com a narração em off muitas vezes explicando tudo aquilo que acabamos de ver em tela. O recurso provavelmente é utilizado como estratégia para manter o foco do público infantil, mas parece excessivo para o público jovem adulto que o filme parece buscar.
O que difere o filme de Craig Gillespie das outras adaptações live-action recentes da Disney é a maneira como o roteiro e o diretor tiram a personagem do contexto conferindo frescor à história. Eles criam para ela um universo particular ao invés de forçar a barra para tentar fazer com que a Cruella em algum momento chegue àquela já conhecida do público. Como dito no início do texto, é mais uma reimaginação do que um prelúdio.
“Cruella” é divertido, esteticamente impecável e tão subversivo quanto pode ser um produto Disney. Emma Stone parece se divertir no papel e se entrega à crescente escalada de vilania da protagonista. O filme ainda tem ótimos coadjuvantes, com destaque para Paul Walter Hauser (“Eu, Tonya”), o que faz com que seus mais de 130 minutos, mesmo sendo um exagero, não sejam cansativos. Assim, “Cruella” é de longe a melhor “versão” live-action para personagens clássicos da Disney.
Este vídeo pode te interessar
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.