Quando "Stranger Things" foi lançada, em 2016, seu sucesso imediato foi considerado fruto do algoritmo. Mesmo sem informações que realmente comprovem isso, a série criada pelos irmãos Duffer foi “acusada” de utilizar os dados gerados por usuários da plataforma para criar o que seria o conteúdo perfeito para o streaming, ou seja, os produtores teriam visto a alta busca por filmes oitentistas e tramas adolescentes com dose de terror e aventura e criado a fórmula a partir disso.
Se você era um adulto, a história o fazia lembrar de sua infância; se era um idoso, remetia à infância de seus filhos, fazendo com que você se identificasse com os adultos da história; e, por fim, se você era uma criança ou um adolescente, não remetia a nada, mas trazia um núcleo de vários personagens com os quais era fácil se identificar e que, mesmo em uma luta para salvar Hawkins de uma ameaça assustadora, passavam pelos dilemas típicos da idade - os tempos mudam, mas os dramas adolescentes são atemporais.
A série não se tornou viral de forma orgânica, como aconteceu, por exemplo, com “La Casa de Papel” ou “Round 6”, e sim teve sua viralização meticulosamente planejada, e não há nada de errado com isso. Assim, mesmo nem sempre sendo boa, principalmente em sua segunda temporada, “Stranger Things” se manteve entre os originais mais populares - e lucrativos - da Netflix. A série pode até não ter sido totalmente planejada, como dizem, mas com certeza é fruto de muito estudo.
Um dos grandes méritos dos produtores é entender o que funciona e o que não funciona a cada leva de episódios. A segunda temporada foi muito criticada pelo excesso forçado de nostalgia e referências, e isso foi devidamente controlado na terceira, que sumariamente ignora todo o famigerado arco de Eleven (Millie Bobby Brown) em Chicago. Da mesma forma, se um personagem desagrada, ele é deixado meio de lado, preterido por outro que conquista o carisma do público - inicialmente protagonista, Mike (Finn Wolfhard) perde espaço para outros personagens ao longo da série, que faz também uma escolha arriscada em aumentar seu quadro a cada temporada.
Essa escolha é arriscada porque tira tempo de arcos adorados pelo público, como a amizade de Dustin (Glen Matarazzo) e Steve (Joe Keery), ou também da relação deste com Robin (Maya Hawke), mas, em contrapartida, oferece algo essencial à qualquer trama de terror, a sensação de que tudo por acontecer. Veja bem, somente ao fim da quarta temporada é que um(a) personagem mais ou menos do núcleo principal pode morrer, e, pelo desfecho do episódio final, é bem capaz de isso não acontecer, mas a impressão é de que o núcleo principal sofreu demais. O que possibilita isso é a tal escolha arriscada de trazer e desenvolver novos personagens a cada leva de episódios.
Isso não significa, porém, que não existam perdas em Hawkins; a cada temporada presenciamos diversas delas e algumas doem bastante nos fãs. “Stranger Things” é inteligente, mesmo que um pouco previsível, ao escolher suas vítimas e as desenvolver bem para que suas partidas sejam sentidas; foi assim com Bob (Sean Astin) no final da segunda temporada e funciona da mesma forma nos novos arcos. Ao contrário de séries como “The Walking Dead”, que introduz e dá um pouco de profundidade ao personagem apenas para matá-lo em seguida, “Stranger Things” é um pouco mais sutil ao usar o recurso para dar a falsa impressão de que tudo se movimentou e, ainda assim, conseguir recomeçar tudo a cada nova temporada.
Não é errado dizer que “Stranger Things” segue a fio a fórmula do Universo Cinematográfico Marvel, maior fenômeno de bilheterias dos últimos anos. A trama tem um núcleo principal que aos poucos se dissolve para combater, de diversas formas, a ameaça sempre crescente - cada personagem vive sua própria jornada do herói, cientes de suas limitações, mas todos com chance de brilhar de alguma forma. Eleven, claro, enfrenta as criaturas mais poderosas, mas todos têm o seu protagonismo garantido nem que seja com uma ideia brilhante, um apoio no momento certo, um ato de bravura ou simplesmente se mantendo fiel aos amigos. Não importa com qual personagem o público se identifique, ele terá sua recompensa.
“Stranger Things” tem também plena noção da potência pop que se tornou. A série sempre utilizou músicas da época em que se passa, canções de nomes como The Clash, The Police, KISS, Scorpions, Toto e Madonna já foram tocadas, mas foi na quarta temporada, com “Running Up The Hill”, de Kate Bush, que as coisas ficaram realmente estranhas. Talvez pelo momento do mercado, a música se tornou um fenômeno instantâneo, virou dança do TikTok e levou a canção da hoje reclusa cantora, fã da série, aos topos das paradas.
Desde que Eddie Munson (Joseph Quinn) foi introduzido, a série já dava indícios de que teria seu momento metal. Não veio na primeira parte da quarta temporada, mas veio no episódio final, quando o jovem toca “Master of Puppets” em um ponto crucial da narrativa. O poder da série é tão grande que os fãs do Metallica ficaram revoltados porque a música tocaria demais e tornaria James, Lars, Kirk e Rob uma banda “pop” - como se o Metallica já não fosse uma das maiores bandas pop do mundo.
Outro ponto que mostra como a recepção/percepção do público influencia a série é a maneira como o texto trata Will Byers. Desde a primeira temporada, fãs especulam acerca da sexualidade do personagem, que nunca se interessou por meninas, mas foi na terceira, que traz um roteiro com hormônios mais à flor da pele, que isso ficou mais claro. Os roteiristas, no entanto, nunca deram essa certeza, despertando nos fãs não a dúvida, mas a identificação da autodescoberta, da dificuldade de finalmente se assumir, de “sair do armário”.
Vale lembrar que a série já tem uma protagonista LGBTQIA+ em Robin, que ganhou um interesse romântico na personagem de Amybeth McNulty, atriz de “Anne with an E”, série querida pelos fãs da Netflix, mas cancelada pela plataforma. Os produtores sabem do apelo da atriz e, por isso, a utilizam com parcimônia, nos momentos certos. Os irmãos Duffer, que não são bobos e já identificaram o arco da sexualidade de Will como um dos mais discutidos, guardam esse clímax como uma carta na manga para a temporada final.
“Stranger Things” é um pastiche de referências diversas, de Stephen King e John Carpenter a Steven Spielberg e John Hughes, passando por clássicos como “Star Wars”, “A Hora do Pesadelo” e “Alien, o Oitavo Passageiro”, ou seja, pouco ali é de fato revolucionário ou totalmente original a não ser a maneira como os produtores conduzem a série, e isso não é um demérito - Quentin Tarantino fez carreira assim. O sucesso vem justamente dessa compreensão de um novo mundo, de novos hábitos e de enxergar o público como parte do processo, não apenas como alvo.
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