“Não imposta o que te digam na escola, Cleópatra era negra”. A primeira fala do docudrama “Rainha Cleópatra”, da Netflix, já joga em pauta a discussão sobre a etnia da figura histórica que chamou a atenção nos trailers. Egípcia de origem macedônica, a rainha sempre foi retratada com traços europeus, mas historiadores e estudiosos têm, nos últimos anos, reforçado Cleópatra como uma mulher negra – sua família já estava há muitas gerações no Egito e dificilmente se manteria sem miscigenação. Além disso, não se sabe quem foram a mãe e a avó da última faraó do Egito.
A série produzida e narrada por Jada Pinkett Smith mistura documentário e dramatização. As falas de acadêmicos e especialistas ditam os caminhos da narrativa principal, que tem Adele James como a protagonista. Cleópatra é construída como uma jovem inquieta, estudiosa e decidida, a filha favorita do rei Ptolomeu XII. Após a morte do governante, a família entra em conflito com uma luta de poder que envolve casamento entre irmãos e tramas complexas, “algo bem ‘Game of Thrones’”, como define uma entrevistada.
Em quatro episódios “Rainha Cleópatra” alterna a estrutura de documentário com um novelesco drama nem sempre muito eficaz. Os depoimentos pontuam a viradas e os acontecimentos históricos, economizando tempo na narrativa dramatizada, mas, em alguns momentos, abusando da repetição – vemos a dramatização justamente do que acabou de ser dito.
A retratação de Cleópatra como uma mulher negra tornou a série alvo de críticas, mas ela parece ter sido criada justamente para isso. É interessante notar que a rainha já foi interpretada por nomes como Elizabeth Taylor e Gal Gadot, ou seja, a arte tem papel essencial na construção dessa representação que “Rainha Cleópatra” busca destruir. Com especialistas obviamente escolhidos para reforçar essa identidade da figura histórica, a série desmonta argumentações contrárias de forma assertiva, mas sempre com um argumento pessoal.
É irônico como a série, que busca força dos fatos no aspecto documental, parte para uma narrativa que parece criada por fãs em outros momentos. A construção de Cleópatra como uma mulher sedutora e uma amante inigualável parece saída de fanfics eróticas criadas a partir do senso comum – há poucos fatos e muitas especulações.
Essas sequências, bem filmadas, com uma sexy pegada televisiva, mostra que a série poderia render uma boa obra totalmente dramatizada, sem a necessidade de se defender o argumento racial, e com liberdades que “Rainha Cleópatra” já ensaia tomar. A protagonista é uma mulher “badass” moderna, uma líder política, uma rainha sedutora; da mesma forma, o texto usa expressões modernas para se referir aos acontecimentos passados, criando um anacronismo às vezes incômodo, principalmente quando o aspecto documental volta ao centro da narrativa.
O texto faz algumas escolhas curiosas, como a de vilanizar Arsínoe IV, irmã de Cleópatra, para reforçar a personagem-título como uma heroína. A série se esforça para humanizar sua protagonista, nos lembrando que seus atos à época, não podem ser julgados com o olhar de hoje, mas não faz o mesmo por outros personagens.
“Rainha Cleópatra” sofre com a falta de identidade que assombra os docudramas; é romantizado ou um documentário fiel aos fatos? Essa diferenciação se torna ainda mais complicada com um roteiro cheio de diálogos ruins e atuações canastronas, tornando tudo muito pouco crível. Falta conteúdo à série, como documentário, e sobra melodrama, como romantização. Ao fim, é uma obra que até reforça a importância da última faraó do Egito e a apresenta para o espectador que não conhece sua história, mas que passa longe de ser algo definitivo ou memorável.
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