Entre 1865 e 1877, os EUA viveram a Era da Reconstrução. Ao fim da Guerra Civil, os Estados do Sul que haviam formado os Estados Confederados foram aos pouco sendo reintegrados ao país. O processo de integração também era essencial para os ex-escravos negros que haviam ganhado a liberdade, mas ainda vivia segregada e sofria perseguição no Sul do país - não é coincidência que a Ku Klux Klan tenha seu embrião nesse período.
Os Estados derrotados foram ocupados por força militares dos que formavam a União e o clima não era dos mais tranquilos. Os soldados do Sul, mesmo perdoados pelo então presidente Andrew Johnson em 1968, se viram sem rumo, sem família e sem emprego. Muitos deles formaram milícias ou se tornaram foras-da-lei, mas outros se reinventaram. É com essa reinvenção que chegamos a “Relatos do Mundo”, filme lançado pela Netflix nesta quarta (10).
No faroeste dirigido por Paul Greengrass (“Identidade Bourne”), Tom Hanks vive um ex-capitão dos Estados Confederados que, ao fim da Guerra, passou a viajar de cidade em cidade lendo as notícias dos jornais. Durante sua jornada, seu caminho se cruza com o de Johanna (Helena Zengel), uma jovem filha de fazendeiros alemães que foi sequestrada por uma tribo indígena e criada por eles. Cabe ao Capitão Kidd levar a jovem novamente órfã, que não fala uma palavra em inglês, a parentes que nem sequer sabem de sua existência.
“Notícias do Mundo” é um faroeste intimista. Kidd é um sujeito misterioso, uma alma marcada que viu e fez coisas horríveis durante a Guerra, mas claramente tem boas intenções; no primeiro quadro já vemos suas cicatrizes e sentimos o peso do fardo que carrega. Johanna é sua redenção, sua chance de se reconstruir da mesma forma que os EUA estavam se reconstruindo.
O roteiro contextualiza o ambiente como um pano de fundo. Logo entendemos haver conflitos com tribos indígenas, ex-escravos e até mexicanos, mas não os presenciamos. O texto também pouco aborda as questões políticas da época ou julga seus personagens por terem lutado em um ou outro lado.
Adaptado do livro de Paulette Jiles, o filme de Paul Greengrass é um produto de fácil consumo, com tudo o que se espera do gênero, para o bem e para o mal. O diretor sabe filmar ação e faz um trabalho eficiente mesmo com poucos recursos e em um filme menor. Greengrass opta pela simplicidade e elegância dos faroestes clássicos ao invés de tentar algo mais arrojado e moderno.
A relação entre Kidd e Johanna é interessante - de um óbvio estranhamento inicial, ela se transforma primeiro em uma correlação de necessidade e depois, em afeto. Tudo, claro, pode ser enxergado como uma metáfora para a necessidade de reconstrução de um país que não consegue se entender. A leitura dos jornais, das notícias, dos fatos desse país é necessária para que não se criem diferentes narrativas, o que fica mais do que claro em um determinado arco. Traçar um paralelo com a disseminação de notícias falsas é inevitável.
Com boa narrativa e ambientação impecável, “Relatos do Mundo” perde força pelo excesso de correção. Para o público, o filme é uma jornada em linha reta, de poucos solavancos, ironicamente o oposto da jornada de Kidd e Johanna.
O roteiro se aproxima superficialmente de questões complexas, mas nunca se aprofunda em nenhuma delas. Essa escolha pode afastar o espectador sem conhecimento do período histórico, pois a construção de mundo e a jornada de redenção de seu protagonista, as partes mais interessantes do filme, dependem desse aprofundamento que o texto não oferece.
“Relatos do Mundo” não é ruim e tem ótimas atuações, mas a verdade é que falta potência e personalidade ao filme de Paul Greengrass.
Este vídeo pode te interessar
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.