Pouco depois de conhecermos a pintora Marianne (Noémie Merlant) a vemos a bordo de um pequeno barco cheio de homens, em um mar agitado, e seu destino ainda nos é um mistério. Uma de suas telas cai na água e ela prontamente mergulha para o resgate. Ao chegar a uma remota ilha, ela só precisa que lhe apontem a direção - com suas telas e bagagem, caminha por pedras até chegar à bela casa, seu destino final, onde logo se instala, se aquece e busca comida.
Marianne vai à tal ilha contratada por uma aristocrata para pintar um retrato de sua filha. A tarefa, claro, não será fácil; Héloïse (Adèle Haenel) sofre com a morte recente da irmã e não anseia se casar com o italiano a quem a irmã havia sido prometida (e a quem se destina a encomendada pintura). A jovem se recusa a posar e inclusive já levou outro pintor à loucura, motivo pelo qual Marianne terá que pintar Héloïse sem que a “modelo” saiba.
As cenas iniciais de “Retrato de uma Jovem em Chamas”, que estreia nesta quinta no Cine Jardins, dão o tom da independência das personagens do filme. As mulheres do romance de Céline Sciamma, mesmo vivendo ainda antes da Revolução Francesa (final do século 18), não precisam de ninguém, são autossuficientes, tomam decisões e se relacionam sem a obrigação de prestar contas.
O filme de Céline Sciamma fez sucesso em Cannes, de onde saiu com os prêmios de Melhor Roteiro e Melhor Filme LGBT, além de ter sido nominado à Palma d’Ouro vencida pelo excelente “Parasita”, mas perdeu a indicação francesa ao Oscar para “Les Miserables”, de Ladj Ly. Com takes longos, ele acompanha os momentos que Marianne e Héloïse passam juntas e a confecção do tal quadro. A relação começa devagar, com desconfiança e pequenos momentos de intimidade; os diálogos mostram o jogo entre as duas, um jogo de que o espectador não identifica imediatamente o resultado, o prêmio pela vitória.
Mas “Retrato de uma Jovem em Chamas” é um romance e funciona como tal. O filme mostra a gênese do relacionamento entre as protagonistas e o público consegue identificar a faísca que dá início ao amor em cada uma. É interessante prestar atenção aos diálogos e às reações de ambas a cada palavra ou provocação- como uma cena específica revela, elas estão se estudando no jogo da conquista.
O grande mérito de Céline Sciamma é fazer com que toda a liberdade e independência das mulheres do filme seja natural para quem assiste a ele. Quando um aborto vira assunto, por exemplo, ele é tratado com naturalidade. Também responsável pelo roteiro, Sciamma cria um romance sem melodrama, uma história sobre ter desejos e vivê-los.
A diretora opta por contar a história quase toda como um grande flashback. Uma lembrança no presente de Marianne a faz resgatar sua história com Héloïse. Assim, quando um ou outro recurso narrativo surge em tela, lembramos que tudo é passado, é a maneira como a pintora reescreveu em sua cabeça aqueles momentos quase fantasiosos.
Nada em “Retrato de Uma Jovem em Chamas” é gratuito. Se Marianne e Héloïse, acompanhadas de Sophie (Luàna Bajrami), leem e discutem o mito de Orfeus e Eurídice, é porque aquelas palavras terão importância mais à frente. O roteiro é inteligente o suficiente para entregar essas pistas aos poucos e permitir que o público “solucione” o enigma e se sinta bem com isso.
O filme, com o perdão do trocadilho, é como uma pintura, uma obra de arte que ganha camadas e profundidade a cada pincelada. Sciamma entrega uma película delicada, com atuações gigantescas baseadas em olhares e trocas de palavras.”Retrato de uma Jovem em Chamas” é uma história de amor sobre igualdade, desejo, perdas e escolhas - o fato de o relacionamento ter um prazo final só aumenta a angústia.
A sequência final, com “As Quatro Estações”, de Vivaldi, música que também surge em um dos melhores momentos da trama, é perfeita. Tudo o que acompanhamos ao longo das duas horas de filme é expresso em interpretação incrível de Adèle Haenel. Um filme irretocável, do início ao fim.
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