Faíscas, pelo dicionário, são “fragmentos luminosos que se desprendem de um corpo em brasa”, elementos pequenos, mas capazes de iniciar um incêndio. “Uma única faísca pode começar um incêndio espectral”, diz a música “Quarantined”, do At The Drive-In; “toda revolução começa com uma faísca”, diz a máxima da franquia de livros e filmes “Jogos Vorazes”. A cultura brasileira perdeu, na última semana, dois nomes de áreas diferentes que, ao menos para mim, foram importantes faíscas: o músico Moraes Moreira e escritor Rubem Fonseca.
O baiano Moraes era uma das maiores definições de alegria da música brasileira. Da fundação dos Novos Baianos, passando pelo carnaval da Salvador (foi o primeiro cantor de trio, antes só instrumental) e pela linda homenagem a Zico em “Saudades do Galinho” até chegar aos dias de hoje, aquele sujeito de cabelos longos e farto bigode era sempre atencioso com quem o abordasse.
O músico capixaba Gustavo Macacko, em homenagem ao músico, lembrou de uma visita dele a Vitória para tocar com o Bloco Bleque. Macacko o levou à Rua da Lama para visitar o Bar Cochicho. Logo que saíram do carro, alguém gritou “Olha lá o Alceu Valença!”; Moraes, bem-humorado, respondeu: “Ainda não entenderam que nossa diferença é o bigode”.
Moraes Moreira também me remete a uma história pessoal. Aqui cabe uma observação: por muito tempo me disseram que colunas e editoriais não deveriam ser pessoais. Pensei nisso antes de escrever esta coluna, mas como ela leva meu nome e tem minha foto lá em cima... lidem com isso.
Corria o ano de 2012, aniversário de 40 anos do clássico “Acabou Chorare”, dos Novos Baianos”, e o músico se apresentaria na finada Estação Porto, em Vitória ao lado do filho Davi Moraes, para comemorar a data. Eu, então repórter do saudoso Caderno Dois de A Gazeta, vergonhosamente nunca havia ouvido o disco. Claro, meus pais o ouviam em casa, eu sabia do que se tratava e conhecia algumas músicas, mas não podia dizer que o conhecia. Lembro-me de ouvir o disco e comentar com o então colega Tiago Zanoli: “cara, isso é muito bom”. Ele, com sua delicadeza habitual, desferiu alguma “patada” que não me recordo agora.
É uma história boba, mas que marca a faísca de Moraes - foi a partir deste momento, realmente ouvindo “Acabou Chorare” pela primeira vez, que a música brasileira entrou na vida de um adulto cuja formação musical foi moldada após o estouro do “Nevermind”, do Nirvana, no início da década de 1990.
Foi justamente nessa época, empolgado pela explosão da nova onda do punk americano, que uma outra faísca surgiu. Corria 1995 ou 96 quando uma professora de Literatura da escola indicou a leitura de “O Buraco na Parede”, de Rubem Fonseca.
Meu gosto literário ainda estava em transição, deixando os livros voltados para adolescentes e procurando uma identidade. Os oito contos de “O Buraco na Parede” caíram como uma luva no gosto de adolescente que se dizia punk: era sujo, violento, erótico, proibido; não parecia ser algo que meus pais leriam (depois descobri alguns outros livros de Rubem Fonseca lá em casa… enfim).
O escritor mineiro morto aos 94 anos já era considerado o reinventor da literatura brasileira da segunda metade do século passado quando sua faísca despertou meu interesse pela leitura. Talvez eu tivesse a “obrigação” de conhecê-lo, como provavelmente tinha também com Moraes Moreira, mas o que importa é que a genialidade o trabalho deles os manterão vivos e gerarão novos “fragmentos luminosos que se desprendem de um corpo” capazes de causar novas revoluções em pessoas que tiverem contato com suas eternas obras.
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