Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

Rubem Fonseca era o mestre do texto policial pop e subversivo

Morto nesta quarta-feira (15), o escritor Rubem Fonseca revolucionou a literatura brasileira tirando-a do campo e transportando-a para centros urbanos cheio de perversidade, violência e erotismo

Publicado em 15/04/2020 às 17h02
Atualizado em 15/04/2020 às 17h43
Escritor Rubem Fonseca
Escritor Rubem Fonseca. Crédito: Zeca Fonseca/Divulgação

Rubem Fonseca

"Agosto"

"Nada temos a temer, exceto as palavras"

Rubem Fonseca morreu, aos 94 anos, nesta quarta-feira (15), após sofrer um infarto em seu apartamento no Leblon, Rio de Janeiro. Ele chegou a ser levado para o hospital, mas não sobreviveu. Não muito longe dali, na segunda, morreu Moraes Moreira pelo mesmo motivo.  Uma semana pesada.

Peço aqui licença para usar uma experiência pessoal para falar sobre o legado do autor.

Meu primeiro contato com a obra de Rubem Fonseca foi na escola, 1995 ou 96, quando uma professora de Literatura pediu um fichamento sobre o então recém-lançado “O Buraco na Parede”. Os oito contos reunidos naquele livro eram especiais, algo que nunca tinha lido. Os contos eram sujos, cheios de palavrões, personagens exóticos, erotismo e violência - Rubem Fonseca fazia isso como ninguém.

O conto que dá título ao livro é uma obra-prima. Em pouco mais de 20 páginas, o autor cria situações complexas e desenvolve seus personagens. Através de um buraco na parede do cubículo onde mora, um jovem observa sua amada, a filha da vizinha. O acesso ao que vê transforma o protagonista e o leva para caminhos sombrios. Tudo isso, repito, em 20 páginas. Era obsceno, proibido e provocativo, tudo o que um adolescente precisava.

José Eduardo Agualusa

Escritor

"Tenho todos os livros dele. Faz parte da minha família. Acho que em algum dos meus romances se sente um pouco a voz dele."

Li aqueles contos algumas vezes e depois descobri que meus pais possuíam alguns livros dele lá em casa. Como nunca haviam me dito isso? Daí li “Bufo & Spallanzani”, “Feliz Ano Novo”, “O Cobrador” e” Agosto”, praticamente em sequência. Rubem Fonseca despertou em mim o gosto pela leitura.

É curioso pensar que hoje, talvez, pais de alunos reclamassem da leitura. A escola em questão é uma das mais tradicionais de Vitória, na qual estudam filhos de grandes empresários e políticos (não sei ao certo o que fazia lá) -, mas, à época, com a sociedade ainda se reacostumando à abertura dos anos 90, não houve reclamações.

Revolucionário e cinematográfico

Apesar da idade, Rubem sempre teve uma narrativa fluida que o situava contemporaneamente. A ele é atribuída a alcunha de “criador da nova era da literatura ficcional brasileira”; suas obras ajudaram a tornar a nossa literatura mais urbana, suja e com linguagem que se aproximava do ritmo do cinema.

Não à toa sua obra foi levada para as telas. Desde "Lúcia McCartney", que virou filme nos anos 1960 e série em 2016, sua presença era cada vez maior na dramaturgia. Textos como "Relatório de um Homem Casado", "A Extorsão", "Mandrake" (que virou série da HBO , "Agosto", se saíram bem nos cinemas e na TV, era como se tivessem sido feitos para isso. Seu último texto em tela foi na novela "Tempo de Amar", baseada na história de seus avós e curiosamente bem diferente do que era seu habitual. 

Marcelino Freire

Escritor

"Rubem Fonseca influencia mesmo quem não tenha sido influenciado por ele. Digo: a grandeza do autor de “O Cobrador” é exatamente esta. Tudo, depois dele, vira influência dele. Escreveu curto: bebeu na fonte do Fonseca. Escreveu violento: é o Fonseca. Cinematográfico: Fonseca na veia."

Os críticos tentaram durante os anos 1960, colocá-lo na prateleira de “mero entretenimento”, mas a qualidade de suas obras foi o suficiente para convencê-los de que literatura policial poderia ir além do clássico.

Rubem Fonseca foi responsável por uma nova corrente da literatura brasileira. Conhecida como “brutalista”, sua narrativa era fortemente sustentada pela oralidade dos personagens e subvertia o policialesco clássico. Seus protagonistas, normalmente inspetores, advogados, detetives ou até escritores (profissões desempenhadas por ele  em vida), eram tão sujos e infames quanto os autores dos crimes que os cercavam - a ética e a moral são facilmente contornáveis, justamente o contrário do que acontece nos romances policiais convencionais. Além disso, seus bandidos são cruéis e não sentem culpa.

Série "Mandrake", da HBO
Série "Mandrake", da HBO

Com essa construção, o escritor não só mergulhava na violência social, mas tratava da condição humana; a solidão do indivíduo nos grandes centros era quase sempre uma companheira de jornada para os personagens.

Ditadura

O autor foi acusado por muitos de ter participado ativamente do Golpe Militar de 1964, mas sempre negou. À época era ligado ao IPÊS (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), que ajudou na construção da base ideológica do regime, mas do qual logo se afastou.

Ainda durante a ditadura, um fato curioso: o livro de contos “Feliz Ano Novo”, lançado em 1975, foi proibido de circular em função do caráter duvidoso de seus personagens e das obscenidades presentes no texto, era um “atentado à moral e aos bons costumes”, diziam. O tal fato curioso, porém, é que o livro só foi censurado um ano após seu lançamento, quando já era um best-seller. O autor travou uma luta jurídica contra o governo, mas seu livro só voltou às prateleiras com o fim da ditadura militar, em 1985.

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