Em “Clube da Luta”, Chuck Palahniuk argumenta que “você não é o seu trabalho”, mas quão difícil é separar a vida pessoal da vida profissional? Quanto uma vida influencia na outra e, ao fim, para o bem ou para o mal, o quanto ambas contribuem na construção da nossa identidade social e até psicológica? “Ruptura”, série de ficção científica da Apple, leva essa relação ao extremo em uma sempre tensa sátira de ambiente de trabalho que surpreende a cada momento.
Criada por Dan Erickson e dirigida por Ben Stiller, “Ruptura” inicialmente lembra a ótima “Homecoming”, mas com uma premissa que se aproxima mais de “Black Mirror”. Na poderosa empresa Lumen, funcionários de determinados setores voluntariamente se sujeitam ao processo de ruptura, uma cirurgia no cérebro que cria duas personalidades distintas: existe o funcionário da empresa e a pessoa fora do ambiente de trabalho, a mesma pessoa, com memórias distintas. Assim, quando entra na empresa, o funcionário não tem mais conhecimento nenhum de sua vida fora dali, retomando as memórias imediatas do dia anterior de trabalho, em contrapartida, tudo o que acontece lá dentro tampouco é lembrado após a saída - se colegas de trabalho se cruzarem na rua, eles não se reconhecerão.
“Ruptura” é centrada em um grupo de quatro funcionários. Após o sumiço de um deles, que pode ter morrido ou pedido demissão, ninguém sabe, Mark (Adam Scott) é promovido a gestor e Helly (Britt Lower) é a nova contratada. É via Helly, inclusive, que somos apresentados às dinâmicas da empresa, como os processos de contratação, ambientação e a complicada demissão. Complicada pois quem manda é a personalidade do exterior, ou seja, só ela pode pedir demissão; pelas regras da empresa, se a pessoa chegou para o trabalho é porque ela deseja estar ali.
É muito interessante a maneira como a série retrata a frieza estética do ambiente de trabalho, sempre com tons sóbrios em prédios grandes e salas espaçosas para mostrar quão pequeno é o funcionário perto daquela instituição. Toda tecnologia utilizada é meio anacrônica, com ecos dos anos 90, de uma era anterior à popularização da internet justamente para não haver comunicação com o mundo exterior. A construção é brutalista e pouco atrativa, a ideia ali é apenas que tudo funcione como uma engrenagem, sem sentimentos e sem interferências - os funcionários nem sequer sabem ao certo o que fazem ali, apenas executam.
Ben Stiller é muito bom ao criar sempre um clima de desconforto, sentimento reforçado pela atuação de Adam Scott. A súbita saída de um colega de trabalho causa estranhamento a Mike, assim como o comportamento de Helly parece disparar alguns gatilhos nele. Não demora para que suas duas personalidades entrem em conflito, principalmente a partir de alguns acontecimentos que não serão discutidos no texto para não entregar spoiler algum.
“Ruptura” é a prova de que a sátira não precisa ser engraçada. A série leva comportamentos de ambiente de trabalho ao extremo, mas a um ponto completamente distinto ao de “The Office”, por exemplo. Os elementos de ficção científica de “Ruptura” apenas existem, abraçando o absurdo e todas as suas possibilidades. Ainda assim, em meio ao clima tenso e ao absurdo, há espaço para o humor, principalmente na relação de trabalho de Mike com seus colegas Dylan (Zach Cherry) e Irving (John Turturro), que também ganham desenvolvimento à medida que a temporada cresce.
Um thriller em sua essência, “Ruptura” é excelente em construir o mistério, entregando viradas aos poucos, nem sempre apenas como ganchos dos episódios. Sentimos a angústia crescente em Mike, que se sujeitou à ruptura até como forma de pelo menos passar oito horas por dia sem pensar na morte da esposa, e somos surpreendidos com ele a cada informação reveladora. Sentimos também o desespero de Helly em seu novo local de trabalho em um arco ainda pouco desenvolvido, mas que deve ganhar espaço até o final da temporada.
A crítica às relações de trabalho é a discussão central de “Ruptura”, que funciona quase como um anti-”The Office” neste aspecto, com relações afetivas sendo construídas exclusivamente fora do escritório. A série da Apple brinca com os discursos motivacionais e destrói todo o discurso de que a empresa “é uma grande família” - . A figura da chefe ironicamente chamada Harmony (harmonia, em português), vivida por Patricia Arquette, é perturbadora.
Com uma segunda temporada já garantida e a primeira ainda em desenvolvimento, a série tem características que funcionariam melhor em um arco fechado, já tendo o fim em vista para que o texto saiba como chegar até ele, sem enrolação. “Ruptura” depende de como vai tratar seus conflitos, se as resoluções serão satisfatórias ou se a série será mais uma a criar mistérios apenas pelo mistério, para confundir, o que não parece ser o caso. A impressão inicial, após os três primeiros episódios, é de uma narrativa criativa, tensa e que tem tudo para ser uma das melhores de 2022.
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