Lançada em 1989 e publicada em 75 ediçõs até 96, quando vendia mais que “Superman” e era o carro-chefe do selo Vertigo, “Sandman” é uma das obras literárias mais importantes da História. A HQ do universo DC transformou seu autor, o britânico Neil Gaiman, em uma celebridade mundo afora, principalmente no Brasil, “o primeiro país a adotar ‘Sandman’”, como disse Gaiman no Twitter recentemente.
Ao longo de anos, desde a década de 1990, ele recebeu diversas propostas para levar o universo para as telas, incluindo algumas que transformariam Sandman em um herói de ação trocando sopapos com Coríntio e Lúcifer, entre outros, para reaver seus artefatos - “era o pior roteiro que li na vida”, disse Gaiman em recente entrevista ao jornalista Rodrigo Salem para a Folha de São Paulo.
Houve, porém, projetos interessantes, como o produzido por David Goyer que teria Joseph Gordon-Levitt como protagonista e diretor, e um interesse em transformar tudo em uma minissérie na HBO, mas não saíram do papel. Por mais de 30 anos, Neil Gaiman teve um papel fundamental no universo "Sandman": barrar qualquer projeto ruim de adaptação. Talvez tenhamos chegado ao ponto em que uma das HQs mais importantes da história, a que definitivamente transformou os quadrinhos “adultos”, era uma das poucas a não ter sido adaptada para as telas.
O “Sandman” que chega nesta sexta (5) à Netflix faz bom uso da época em que é lançada, com a tecnologia necessária disponível para se criar diversos reinos distintos com riqueza e principalmente fazendo bom uso da narrativa seriada, com cada episódio funcionando como uma edição da revista de forma semi-procedural, com um arco fechado se conectando a uma história mais ampla.
A primeira temporada da adaptação da Netflix abrange dois arcos, “Prelúdios & Noturnos” e “Casa de Bonecas”, e se mantém bem fiel ao texto de Neil Gaiman, produtor da série. O autor participou ativamente da produção e diz ter repensado seus personagens para um contexto social de três décadas depois de suas criações. Há algumas mudanças também na contextualização do universo de “Sandman”, sem as referências e participações de personagens secundários da DC até por questões de direitos autorais.
Uma breve introdução explica o espectador o que é o Sonhar, o mundo dos sonhos, e nos apresenta a Morpheus/Sandman/Sonho (Tom Sturridge) antes de encontrar o ponto em que a história tem início, em 1916, quando Roderick Burgess (Charles Dance) utiliza um ritual de magia para prender Morpheus e barganhar por sua liberdade. Diferente da HQ, que “solta” o personagem nos anos 1980, a série o faz nos dias de hoje, mas isso muda muito pouco na dinâmica da história, apenas traz alguns personagens utilizando telefones celulares ao invés de orelhões ou telefones fixos.
A temporada poderia perfeitamente ser dividida em dois lançamentos de cinco episódios espaçados por alguns meses pela Netflix - aumentaria o hype e deixaria a série mais tempo em evidência. O primeiro arco tem Morpheus em busca de seus artefatos (a areia, o elmo e o rubi) e funciona para explicar ao público as dinâmicas daquele universo. Mesmo sem ser desnecessariamente didática, a série explica gradualmente quem é quem, sem pressa, dando apenas um gosto das possibilidades. Assim, conhecemos John Dee (David Thewlis), Lúcifer (Gwendoline Christie), Johanna Constantine (Jenna Coleman), Hal (John Cameron Mitchell) e alguns dos Perpétuos, os “irmãos” de Morpheus, como Morte (Kirby Howell-Baptiste) e Desejo (Mason Alexander Park), mas nunca temos total dimensão de alguns deles, o que será explorado em novas possíveis temporadas, como nos quadrinhos.
É Coríntio (Boyd Holbrook) quem tem sua importância ampliada na versão de “Sandman” nas telas e funciona como o grande vilão da temporada. Um pesadelo fugido do Sonhar após a prisão de Morpheus, Coríntio, tal qual no material original, se torna um serial killer e inspira seguidores; seu arco se conecta ao de Rose (Vanesu Samunyai) e Jed (Eddie Karanja) e sustenta o antagonismo nos episódios finais
É interessante como “Sandman” introduz personagens com calma e sem preocupação imediata de dar peso a eles. Morte tem um ótimo episódio dedicado a ela, mas Desejo funciona quase como um teaser das próximas temporadas, o que também acontece com Lúcifer apesar de algumas alterações para dar a Gwendoline Christie um pouco mais destaque no episódio do Inferno.
Motivo de ira de fãs mais conservadores, a escalação dos atores e as mudanças em alguns personagens funcionam. A imposição física de Gwnedoline Christie como Lúcifer chama a atenção, assim como sua similaridade à primeira aparição do regente do Inferno na HQ. Ter Desejo como uma pessoa não-binária faz muito sentido e Mason Alexander Park é ótime no pouco tempo que tem de tela. O próprio Gaiman, vale ressaltar, comandou todas as mudanças - “Sandman” é uma obra muito à frente de seu tempo, mas carecia de maior representatividade e inclusão em uma época em que isso não era discutido.
Inicialmente, mesmo se assemelhando à mistura estética de Robert Smith (do The Cure) e Neil Gaiman (o autor nega) do personagem original, Tom Sturridge talvez não represente o Morpheus do nosso imaginário, dando vida a um Senhor dos Sonhos enfraquecido e hesitante. Uma relida nas primeiras edições de “Sandman”, no entanto, mostra a versão das telas bem próxima da dos quadrinhos. Vemos um Morpheus em transformação após mais de um século longe de seus domínios e tendo visto o pior da humanidade. É curioso como o protagonista parece ganhar “cor” à medida que a temporada se desenvolve e parece entender melhor a vida dos humanos.
Tecnicamente, “Sandman” é ótimo. Há bem menos utilização de computação gráfica do que o esperado para uma obra de fantasia. A série toda um tom meio etéreo, inclusive fora do Sonhar e dos outros reinos, o que reforça o tom fantasioso. O texto de Gaiman também confere à série o peculiar humor britânico, que pode soar estranho para alguns, e uma bem-vinda esquisitice (como o o quinto episódio, “Sem Parar”). A profundidade que a escrita do autor garante aos coadjuvantes possibilita episódios praticamente sem a presença de Morpheus e isso nunca é um problema.
Como adaptação, “Sandman” é excelente, mantendo a essência do universo de Neil Gaiman intacta e adicionando camadas e elementos ao mundo criado pelo autor há mais de três décadas. Como série, resta saber como será a recepção de um público não-iniciado no Sonhar. “Sandman” pode parecer uma narrativa simplista e até ingênua, dialogando mais com séries como “Doctor Who” do que com obras contemporâneas de sucesso como “The Boys”. O mundo dos sonhos de Neil Gaiman foi revolucionário e transformador nos anos 1980/90, mas será ainda tão encantador para uma geração que cresceu com as obras influenciadas por “Sandman” e que terá contato com ela sem o peso da nostalgia?
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.