Crítico de cinema e colunista de cultura de A Gazeta

Scorsese vs. Marvel: afinal, o que é cinema?

Lendário cineasta veio a público dizer que não considera o que a Marvel faz como cinema

Publicado em 26/10/2019 às 06h00
Atualizado em 26/10/2019 às 06h00
Martin Scorsese no set do filme "Silênci". Crédito: Kerry Brown/Divulgação
Martin Scorsese no set do filme "Silênci". Crédito: Kerry Brown/Divulgação

O que é cinema? Quem decide o que é ou deixa de ser cinema? É a experiência completa, com sala escura, tela grande, ou pode ser consumido em um telefone, dentro de um ônibus, durante o trajeto para casa?

Me lembro de um colega que certa vez se recusou a escrever sobre "Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal" (2008) por considerar que o filme "não era cinema". Veja bem, um filme de Steven Spielberg, um dos caras que tornou o cinema americano pop nas décadas de 1970 e 80.

Spielberg é parte da geração que salvou o cinema americano, que levou o público de volta às salas com filmes como "Tubarão" e "Contatos Imediatos de Terceiro Grau". À mesma época, George Lucas lançava o primeiro “Star Wars” e Martin Scorsese brilhava com "Taxi Driver" e "Touro Indomável". A subversão dos valores vigentes, levando influência dos cinemas oriental e europeu para o mercado americano causou uma revolução em Hollywood.

Tendo sido esses caras responsáveis por uma grande mudança, por que hoje se posicionam contra as novas mudanças? Spielberg já afirmou que filmes da Netflix não devem ser considerados cinema; a mesma Netflix que vai lançar "The Irishman", aguardadíssimo filme de Martin Scorsese - este, por sua vez afirmou não considerar cinema os filmes feitos pela Marvel. "Honestamente, o mais perto disso, por mais bem feitos que sejam, com atores fazendo o melhor possível dadas as circunstâncias, são parques temáticos", proferiu.

Francis Ford Coppola ("O Poderoso Chefão") saiu em defesa do colega: "Martin foi gracioso quando disse que não é cinema. Ele não disse que são desprezíveis, que é o que são".

James Gunn, diretor de "Guardiões da Galáxia". Crédito: Disney/Divulgação
James Gunn, diretor de "Guardiões da Galáxia". Crédito: Disney/Divulgação

Bem, tecnicamente falando, eles estão equivocados - os filmes da Marvel têm estrutura narrativa, roteiro, atores, diretores. Uma questão que incomoda, e que talvez tenha motivado tais comentários, é o fato de as produções da Marvel praticamente monopolizarem as salas quando lançados, tirando espaço dos filmes menores e com ambições mais artísticas, algo a ser discutido mais amplamente. Longas da franquia “Star Wars”, outra propriedade do "perigoso" império Disney de entretenimento, funcionam da mesma forma (mas George Lucas foi poupado).

De volta à questão central, os filmes de heróis podem estar sendo produzidos como manda a indústria cultural (aquela lá de Adorno, o "quinto Beatle"), como produtos criados unicamente sob o prisma do capital, mas ainda assim são arte. Desmerecer esses filmes é também desmerecer tudo o que foi construído nas histórias de quadrinhos ao longo de mais de um século, é desmerecer Stan Lee, Jack Kirby, Steve Ditko, Bob Cane, Frank Miller, Will Eisner, Alan Moore, Joe Shuster, Herry Siegel, Brian K. Vaughn, Brian Michael Bendis, Nick Spencer... É também desmerecer o trabalho de cineastas tão autorais quanto os da geração deles, e nesta lista incluo James Gunn, Scott Derrickson, Ryan Coogler, Taika Waititi, Anthony e Joe Russo etc.

James Gunn

Cineasta

"Muitos dos nossos avós achavam que filmes de gângsters eram todos iguais, frequentemente os chamando de ‘desprezíveis’. Nossos avós pensavam o mesmo de faroestes, e acreditavam que as obras de John Ford, Sam Peckinpah e Sergio Leone eram todas iguais"

Martin Scorsese é meu cineasta favorito, um dos maiores de todos os tempos. Seu cinema ainda hoje é incrível, mas seu posicionamento nesta questão me faz evocar Bob Dylan em “The Times They’re A-Changin’”: “não critique o que você não consegue entender”.

James Gunn ("Guardiões da Galáxia") foi pontual: "muitos dos nossos avós achavam que filmes de gângsters eram todos iguais, frequentemente os chamando de ‘desprezíveis’. Nossos avós pensavam o mesmo de faroestes, e acreditavam que as obras de John Ford, Sam Peckinpah e Sergio Leone eram todas iguais. Quando eu estava surtando com 'Star Wars', um tio me respondeu dizendo 'Eu vi esse filme quando se chamava '2001 - Uma Odisseia no Espaço' e, rapaz, era um tédio!’ Filmes de herói simplesmente são os equivalentes modernos aos faroestes, gângsters e aventuras no espaço. Alguns filmes de herói são terríveis, outros são lindos. Assim como faroestes e gângsters, nem todo mundo irá gostar deles, mesmo alguns gênios. E está tudo bem".

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