A Netflix teve experiências diversas com produções brasileiras de gêneros variados, das ótimas “Sintonia” e “Maldivas”, até obras constrangedoras como “Olhar Indiscreto”, passando por “Bom Dia, Verônica”, “Irmandade”, “Coisa Mais Linda”, “Cidade Invisível”... Depois de algumas tentativas ruins na criação de uma série de comédia tipicamente brasileira, como “A Sogra que te Pariu” e “Nada Suspeitos”, a plataforma parece ter acertado a mão com a irregular, mas engraçada, “O Cangaceiro do Futuro” e a recém-lançada sitcom “Sem Filtro”, atual série mais vista no Brasil.
“Sem Filtro”, em um primeiro momento, parece se sustentar apenas no carisma de Ademara Barros, sua protagonista. A atriz pernambucana vive Marcely, uma jovem estudante de economia da periferia do Rio de Janeiro que desiste do curso para tentar seguir seu sonho, ser influenciadora. Distante do estilo fofinho e falso que domina as redes sociais, Marcely busca algo diferente, no estilo sincerão, sem edição, tudo feito a partir de lives. O problema é que sua influência acaba restrita a Ararinhas, região em que mora, e seus habitantes.
Sustentada apenas por essa premissa, a série criada pela roteirista Luiza Conde poderia se tornar repetitiva, mas “Sem Filtro” tem uma força incrível em seu elenco. Todo o núcleo que cerca Marcely é ótimo, mesmo que alguns personagens não ganhem tanto desenvolvimento. A agora influenciadora vive com a mãe, Val (Flávia Reis, sempre ótima), e a irmã, Lohana (Mel Maia), em uma casa em que também mora Rubria (Thamirys Borsan) e na qual sempre está Mumu (Ora Figueiredo), pai da protagonista.
O recorte de uma família suburbana é ótimo ao mostrar que o conceito de família, em bairros e cidades pequenas, é mais amplo, englobando vizinhos e amigos de forma única. Assim, o texto ainda abraça Gustavo (Pedro Ottoni), Max (Maicon Rodrigues) e a também influenciadora Sandrinha (Luisa Perissé, a cara da mãe), além, claro, de todos os moradores de Ararinhas.
Ademara é ótima como Marcely e aproveita muito bem o texto para alternar cenas de humor de constrangimento com outras piadas mais refinadas e muitas referências. “Sem Filtro” utiliza linguagem de Instagram e TikTok em algumas cenas com as personagens gravando, mas usa a tela de dispositivos sempre como transição, mostrando as redes de seus personagens, um recurso que, surpreendentemente, ajuda na construção das personas deles. A série é ótima em lidar com a dualidade entre o que é mostrado nas redes e o que se vive fora delas, escancarando isso em PiLove (Carol Garcia), uma influenciadora de sucesso por quem Sandrinha é obcecada e com quem Marcely desenvolve uma relação de amor e ódio.
Ao contrário do que se poderia esperar, “Sem Filtro” nunca se transforma em uma comédia de gritaria, pelo contrário, a série faz humor totalmente popular, sem abrir mão de alguns estereótipos e de algumas caricaturas, mas se esforça sempre para subverter a expectativa do público. Personagens inicialmente unidimensionais, como PiLove, ganham arcos e até alguma profundidade. A ótima Dona Vera (Sandra de Sá), sem abrir a boca, é uma das personagens mais engraçadas da série, e o episódio dedicado a ela mostra um pouco essa subversão da expectativa.
Boa parte do humor da série reside na dinâmica entre Ademara e Pedro Ottoni. O ator mostra um tempo de comédia ótimo, dando naturalidade às tiradas de seu personagem e tornando ágil suas interações com a agilíssima Ademara, muito confortável no papel e dando a impressão de estar pensando sempre adiante. Como “Sem Filtro” é uma série curta, com dez episódios de cerca de 30 minutos, parece faltar tempo de tela para desenvolver as personagens de Mel Maia e Thamirys Borsan, mas isso não impede as atrizes de cumprirem bem seus papéis. O mesmo acontece com o Max de Maicon Rodrigues, que cumpre a função de interesse romântico de Marcely, mas fica apenas nisso.
Apesar de ser uma comédia escancarada e buscar o riso o tempo todo, “Sem Filtro” ainda surpreende com uma inesperada carga dramática no fim - Flavia Reis e Ademara são ótimas como mãe e filha e a cena das duas no último episódio é realmente muito boa.
Ao fim, “Sem Filtro” é inteligente ao não depositar todo seu carisma na muito carismática Ademara. Seria uma saída fácil para o texto, mas a série acerta ao cercar a protagonista de personagens interessantes, interpretados por ótimos atores, que facilitam a identificação do público com a série e deixam aquela sensação de afeto, seja na relação familiar, na amorosa ou na amizade que vemos em tela.
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