“Doutor Sono”, que chega aos cinemas nesta quinta (07/11), teve dois trailers em sua campanha de divulgação. O primeiro deles foi feito sob medida para agradar os fãs de “O Iluminado” (1980), adaptação cinematográfica de Stanley Kubrick para livro de Stephen King. Já o segundo parecia ter por objetivo agradar King - o autor sempre criticou a versão para as telas por acreditar que o diretor não respeitou o material original, uma das histórias mais pessoais já escritas por King e um retrato de sua luta contra o alcoolismo.
Kubrick, de fato, altera bastante a dinâmica do filme em relação ao livro e dá destinos bem diferentes para Jack Torrance (Jack Nicholson); o lendário cineasta cria um protagonista no limite da sanidade, uma bomba relógio, enquanto King constrói seu alter ego como um cara bom levado à loucura por forças obscuras (a tal metáfora para o alcoolismo). A verdade é que Kubrick fez um filme de suspense e terror ao invés do sentimental suspense com ficção científica desejado por King.
É por esse conflito que atravessa quase quatro décadas que “Doutor Sono” chama a atenção: o filme dirigido e roteirizado por Mike Flanagan (“A Maldição da Residência Hill”) a partir do romance homônimo de King é uma continuação direta das duas versões de “O Iluminado”, ou seja, ele faz as pazes entre o autor e Stanley Kubrick.
Após um curto prólogo sobre o que aconteceu após “O Iluminado”, “Doutor Sono” apresenta Dan Torrance (Ewan McGregor), o menininho do filme de 1980, um alcoólatra que sucumbiu ao vício para amenizar suas lembranças horríveis e “controlar” seus poderes. Assistimos a alguns acontecimentos de sua vida, mas logo somos levados a anos adiante, com Dan já sóbrio e usando seu "brilho” para ajudar pessoas. Ele se conecta a Abra (Kyleigh Curran), uma jovem que “brilha” mais que ele e desperta interesses obscuros de um culto liderado por Rose (Rebecca Ferguson) e formado por uma espécie de vampiros que se alimentam da luz dos “iluminados”. Sim, a trama parece algo saído de uma ficção científica ruim dos anos 1990 ou 2000.
“Doutor Sono” é um filme tenso e assustador muito em função da direção de Mike Flanagan, que usa toda a abrangência do roteiro para dar profundidade ao culto - ao contrário de “O Iluminado”, que tem no hotel Overlook seu vilão, os antagonistas aqui têm rosto e motivações. O filme não alivia nas sequências de violência e algumas, uma em especial, realmente impactam do outro lado da tela.
Flanagan mostrou em “A Maldição da Residência Hill” saber criar tensão com poucos elementos. Aqui ele faz excelente trabalho visual para explicar o que é o “brilho” e como ele afeta as pessoas de diferentes formas. O diretor também desenvolve bem as situações que amarram a complexa e por vezes rocambolesca trama.
“Doutor Sono” tem ritmo interessante e não gasta tempo com passagens desnecessárias em suas duas horas e meia de projeção. O filme deixa o claustrofóbico hotel Overlook e passa por cidades pequenas dos EUA. É curioso perceber como o cineasta se sai melhor em cenários mais intimistas como na já citada “Residência Hill” e em “Jogo Perigoso”, outra adaptação de Stephen King (disponível na Netflix).
Ironicamente, é quando a trama de King encontra o hotel Overlook que o filme dá uma desandada. Após se manter longe do filme de 1980 durante a maior parte do tempo, “Doutor Sono” abraça as referências kubrickianas no terceiro ato, momento em que o filme perde identidade. Flanagan tenta, de certo modo, emular estilos e técnicas de Kubrick e tudo é tecnicamente perfeito, mas deslocado com o resto do filme.
Não foi à toa que Stephen King aprovou “Doutor Sono”, pois o filme é bem fiel ao espírito da obra do escritor. Flanagan entrega um trabalho com calor humano, magia, terror e crescimento pessoal, um filme que acerta muito quando aposta nessas características e se atrapalha narrativamente quando tenta amarrar filme e livro. Ainda assim, é possível que fãs de ambos saiam do cinema satisfeitos.
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